terça-feira, 26 de março de 2019

As três ignorâncias contra a democracia

Numa fase dramática da crise civilizatória, enfrentamos simultaneamente a arrogância do colonialismo, a indolência das transformações inconclusas e a perversão das fake news. Será possível mudar o mundo, ainda assim?

Escrevi há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de desconhecimentos. Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se conhece tudo a respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode rivalizar com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o professor ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser. 
Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as seções de voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de votar num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autônomas em relação às do clã ou família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.
O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir exclusivamente a um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e desprezar todos os outros como variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjetivas, superstições ou atavismos. Este modo de produção de ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela) tomou contato aprofundado com culturas extra-europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A partir do século XVII, a ciência moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que está para além ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi apenas que o Modo 1 produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não sabe que há outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua ignorância como a única verdade.
O segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção coletiva de amnésia, de esquecimento. Este modo de produção tem sido frequentemente ativado nos últimos cinquenta anos, sobretudo em países que passaram por longos períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram causas profundas: gravíssima desigualdade socioeconômica; apartheid baseado em discriminação étnico-racial, cultural, religiosa; concentração de terra e consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do direito à autodeterminação de territórios ancestrais ou com forte identidade social e cultural, etc. Estes conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras prolongadas, civis ou outras, produziram milhões de vítimas – entre mortos, desaparecidos, exilados e internamente deslocados. Para além das partes em conflito, houve sempre outros atores internacionais presentes e interessados no desenrolar do conflito; a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do conflito como (menos frequentemente) ao seu término. Em alguns poucos casos houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do conflito entre o nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser questionável se houve ou não vencedores e vencidos, sobretudo quando a parte supostamente vencida impôs condições mais ou menos drásticas para aceitar o fim do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que dominou o país entre 1964 e 1985).
Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país e consolidar a paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e reconciliação, muitas vezes como componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional e a identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina, Guatemala, África do Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria dos processos pós-conflito, forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a redistribuição de terra ao reconhecimento da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.
O Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de ignorância por via da produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O Modo 3 produz conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a ignorância não é aqui um subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os imigrantes e refugiados como agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons costumes; a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.
Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam consequências distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é simultaneamente radical e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um campo imenso para a sociologia das ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos (passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se satisfaz superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração que sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade emancipadoras que estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma reconciliada consigo mesma, com base em justiça social, histórica, étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola, corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação. Esta ignorância está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração da estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.
Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a ignorância arrogante produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a proliferação da arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa). É que uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade científica torna-se mais vulnerável a qualquer falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé. Por sua vez, a ignorância indolente produzida pelo Modo 2 (amnésia, esquecimento) desarma vastos setores da população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3. A ignorância arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece, normaliza e banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas em exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objetos de guerra. Quando a ignorância arrogante se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-se tão invisível que é praticamente impossível de erradicar.
O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente, embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade. A ignorância arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que outros saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento democrático; e faz com que vastos setores da população não se sintam representados pelos seus representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e descolonizadora, sem as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites, uma disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais antidemocrática de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos, percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a derrota.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

PUBLICADO EM 18.03.2019

A previdência social, o consumo das famílias e a equidade


Quando Paulo Guedes diz que precisa economizar R$ 1 trilhão em dez anos, o valor mágico é apresentado como simples operação contábil. Nem ele nem ninguém até aqui mencionou o fato de que, o que é apresentado como “economia” para o governo, na verdade representará um enxugamento brutal de recursos hoje disponíveis para o consumo das famílias.

A reforma da Previdência proposta pelo governo trata como privilégio a aposentadoria ou pensão dos que a conquistaram com o suor de seu trabalho – para a maioria dos brasileiros pesado, árduo, muitas vezes incapacitante. Só assim se compreende a divulgação da reforma com acento apenas em seu aspecto contábil, ou seu impacto no déficit público: economizar R$ 1 trilhão em dez anos. A imprensa vem aos poucos trazendo a lume os meandros do projeto, seus muitos “sacos de maldades”, como gostam de dizer os economistas, num importante trabalho de informação e esclarecimento da população e, espero, dos políticos que votarão a reforma. Gostaria de trazer contribuição original a esse debate, apresentando alguns números até aqui ausentes das discussões.

Segundo dados da Pnad Contínua Anual de 2017, 14,1% da população brasileira recebiam algum tipo de aposentadoria ou pensão, num total de R$ 51 bilhões, pagos a cerca de 29 milhões de pessoas todo mês. Destas, 12,5 milhões eram homens e 16,6 milhões mulheres. A aposentadoria (ou pensão) média foi de R$ 1.932 para os homens e R$ 1.600 para as mulheres, a preços de 2017. Apenas 18% dessas pessoas tinham uma ocupação remunerada além da aposentadoria, majoritariamente como trabalhadores/as por conta própria. Ou seja, mais de 80% tinham na aposentadoria a única fonte de renda. Mais ainda: 45% dos segurados recebiam exatamente o salário mínimo (R$ 937 em 2017) (44% dos homens e 51% das mulheres); entre os mais pobres (8% que recebiam menos de um salário mínimo), as mulheres eram maioria (60%), e entre os 5% mais ricos, 53% eram homens.
O ministro da Economia, Paulo Guedes , durante a cerimônia de transmissão do cargo do novo presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes.
Naquele ano de 2017, 62 milhões de pessoas viviam em famílias com ao menos um membro aposentado/a ou pensionista, sendo que 10 milhões viviam em famílias nas quais a aposentadoria ou pensão era a única renda disponível. E 30 milhões de pessoas viviam em famílias nas quais 50% ou mais da renda familiar provinham de aposentadoria ou pensão.
Engana-se quem imagina que esta é uma realidade do mundo rural. Na verdade, 82% dessas pessoas (com pelo menos 50% da renda familiar provenientes de aposentadoria ou pensão) viviam nas cidades, e nada menos do que 41% estavam na Região Sudeste (19% no estado de São Paulo, 10% no do Rio de Janeiro), contra 30% vivendo no Nordeste e 16% na Região Sul.
Por fim, o dado mais relevante: quase 60% das famílias nas quais 50% ou mais da renda familiar eram provenientes da aposentadoria de um ou mais de seus membros (abrigando 16 milhões de pessoas), tinham renda familiar per capita de 1 salário mínimo ou menos, e 32% dessas famílias (abrigando 9 milhões de pessoas) tinham renda familiar per capita de meio salário mínimo ou menos.
Esses dados deixam claro que parcela expressiva da população depende inteiramente (ou centralmente) dessa fonte de renda para sua sobrevivência. Ou seja, o consumo cotidiano dessas famílias depende dessa fonte de renda. Famílias com dependência de aposentadorias ou pensões com renda familiar per capita de 1 salário mínimo ou menos muito provavelmente gastam todo o seu dinheiro com despesas obrigatórias: alimentação, moradia, habitação, saúde, educação dos filhos. Para a maioria não sobra nada ou quase nada para outras despesas. Esse não é um mundo de privilégios. É um mundo de necessidades vitais.
Quando Paulo Guedes diz que precisa economizar R$ 1 trilhão em dez anos, o valor mágico é apresentado como simples operação contábil. Nem ele nem ninguém até aqui mencionou o fato de que, o que é apresentado como “economia” para o governo, na verdade representará um enxugamento brutal de recursos hoje disponíveis para o consumo das famílias. E para proporção expressiva destas, o único recurso disponível. É claro que isso terá impacto direto no mercado interno, com redução do potencial de crescimento econômico e de geração de empregos no médio e no longo prazos.
Em tempo: aposentados e pensionistas que figuravam entre os 5% mais “ricos” se apropriavam de 25% dos valores pagos em 2017. Se a essas pessoas fosse aplicado o teto do INSS (R$ 5.531 naquele ano), haveria uma “economia” mensal de R$ 100 bilhões, ou R$ 1,2 trilhão em dez anos, segundo a mesma Pnad Contínua. Qualquer governo que visse na reforma a chance de tornar o sistema brasileiro mais equitativo enfrentaria o problema dos altos rendimentos, propondo soluções que não punissem os mais pobres, maioria da população e também dos segurados. A proposta atual, ao contrário, implica em sua punição brutal e desumana, como vêm mostrando as análises sobre as regras de transição, as chances escassas de acesso ao benefício no futuro e a tendência de transformar o salário mínimo no teto do INSS.
ADALBERTO CARDOSO


PUBLICADO EM 15.03.2019