Janaína Machado Sturza, Renata Maciel
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A
democracia no Estado atual apresenta-se como uma forma “universal” de promover
a cidadania e consagrar os direitos humanos. Todavia, essa cidadania
democrática tem algumas peculiaridades, pois se por um lado entende-se o modelo
de democracia como sendo aquele que está fundado na representatividade de
governos, no desenvolvimento de eleições multipartidárias e livres, na
igualdade do voto, no direito das minorias, no reconhecimento de liberdades
individuais e coletivas; por outro lado vê-se que esta forma de exercício da
cidadania ainda não é pleno, mas é um processo complexo que necessita ser
constantemente aprimorado, criado e recriado, no sentido de buscar, de forma
eficiente, a consolidação dos direitos humanos e o pleno exercício da cidadania
por TODOS os sujeitos pertencentes ao chamado Estado democrático de direitos.
Neste
sentido, então, verificou-se que durante séculos a sociedade e o Estado eram
compreendidos a partir de um mesmo processo de organização, sendo, até mesmo,
entendidos como um “único ser”, não existindo formas associativas humanas
diferentes do Estado e dentro do Estado. Todavia, o homem evoluiu e junto com
ele a sua dinâmica de organização social e política. Logo, a sociedade também
evoluiu, no sentido de tornar- -se uma instituição autônoma e capaz de
auxiliar, entre outras demandas, na tomada de decisões, com o objetivo de
fiscalizar e escolher as prioridades nas quais o Estado deveria atuar.
Seguindo
este ideário, parece que o Estado é uma invenção do ser humano para atender suas
demandas, de forma a propiciar o desenvolvimento harmônico com os demais
sujeitos, devido a sua individualidade e singularidade. Desta forma, a ideia de
Estado parte do pressuposto teórico de que os homens precisam viver em
sociedade e, assim, carecem, igualmente, ser regrados por uma instância externa
a eles, dotada de coerção, que só poderá ser desencadeada em nome da ética e do
bem comum.
A
partir da formação das estruturas sociais e do nascimento do Estado de direito,
mais especificadamente, da elaboração teórica de Maquiavel, nasce o interesse
do Estado em administrar os ideais públicos, com o objetivo primordial de
evitar a ocorrência de abusos por parte daqueles que possuíam o poder. Desta
forma, então, o Estado era visto como uma estrutura organizada e equilibrada,
capaz de promover e proteger direitos, dando origem, mais adiante, ao que hoje
chama-se de Estado democrático de direitos.
Hoje,
com o modelo de Estado democrático vivenciado pelo ator-cidadão, torna-se
imprescindível demonstrar o poder da democracia neste contexto evolutivo de
sociedade e de Estado, à partir de uma relação direta com a promoção e proteção
dos direitos humanos, através do esforço do próprio Estado, que se buscará
efetivar os direitos dos cidadãos e consequentemente a concretização da
cidadania, em um processo de democracia participativa, a qual, em primeira
instância, garantirá também a eficácia dos direitos humanos.
O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS: TRAJETÓRIA
EVOLUTIVA
Os direitos humanos são
decorrentes da construção jurídica histórica da civilização. Ao contrário de
representarem um acontecimento natural decorrente de uma vontade única, divina
ou mitológica, os direitos humanos se estabelecem através do desenvolvimento do
indivíduo, na imposição de limite ao poder soberano.
Ao considerar essa
evolução histórica como fundamental na construção dos direitos humanos,
Norberto Bobbio afirma que “os direitos do homem, por mais fundamentais que
sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”
(2004, p. 5).
Dessa forma, por buscarem
um aprimoramento sobre a convivência humana, e sendo decorrentes desses fatores
históricos e culturais, Bobbio defende que não é possível a busca por um único
fundamento absoluto, inquestionável, irreversível para os direitos humanos. No
entanto, existem fundamentações variadas e válidas para os direitos humanos
(Bobbio, 2004, p. 23). O autor destaca que a busca de um único fundamento
absoluto para os direitos humanos passa por quatro dificuldades: A consideração
de que direitos humanos é uma expressão muito vaga; o fato de os direitos do
homem constituírem uma classe variável de acordo com o momento histórico; ser a
classe dos direitos do homem heterogênea; e, os direitos humanos apresentam uma
antinomia entre os direitos invocados pelas mesmas pessoas.
Já Comparato (1997)
discorda da ideia de Bobbio de que não exista um fundamento absoluto e válido
para os direitos humanos e destaca que:
Uma das tendências marcantes do pensamento
moderno é a convicção generalizada de que o verdadeiro fundamento de validade -
do direito em geral e dos direitos humanos em particular - já não deve ser
procurado na esfera sobrenatural da revelação religiosa, nem tampouco numa
abstração metafísica - a natureza - como essência imutável de todos os entes no
mundo. Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente,
daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o
próprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa, diante da
qual as especificações individuais e grupais são sempre secundárias (Comparato,
1997, p. 7).
A discussão inicial sobre
os direitos humanos começa com os direitos naturais, que foram os direitos que
conseguiram conceber, ainda que ínfimas, concepções de que existem direitos
mínimos que são inerentes a pessoa humana independentemente do Estado. Esses
direitos naturais, proclamados no século XVIII se transformaram em direitos
humanos, em um movimento que se expandiu através da França (Declaração Francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão - 1789) e dos Estados Unidos (Declaração de
Independência Norte Americana – 1776, e, Bill of Rights – 1791) para toda a
humanidade.
O marco histórico para os
direitos humanos é o início da modernidade, bem como a promulgação de
documentos legais que conseguiram distinguir o Homem, do Estado e soberano.
Nesse sentido, Costas Douzinas refere que “Se a modernidade é a época do
sujeito, os direitos humanos coloriram o mundo à imagem e semelhança do
indivíduo” (2009, p. 99).
Assim, a Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração de
Independência Norte Americana (1776) são os dois documentos fundamentais que
marcam a passagem dos direitos naturais para sua transformação em direitos
humanos, uma vez que a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos, de 1789,
proclamou, em seu primeiro artigo, que os homens nascem e permanecem livres e
iguais no direito. Ademais, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789) foi fundamental como essência e a forma adotadas na redação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A natureza pública e
política da Revolução Francesa é evidente para os direitos humanos, a partir da
redação de tal declaração os direitos pertencem ao homem e ao cidadão. Douzinas
(2009, p. 103) destaca que a diferença entre os direitos naturais do homem e os
direitos políticos do cidadão não fica clara, os direitos proclamados não eram
um fim em si mesmos, mas os meios usados pela Assembleia para reconstruir o
Estado.
Nesse sentido, se inicia
a ideia de Iluminismo, na qual se buscava a emancipação do indivíduo de todas
as formas de opressão política, mas, genericamente, essa emancipação era o
abandono progressivo do mito e do preconceito em todas as áreas da vida e a sua
substituição pela razão. “Em termos políticos, a liberação significa a sujeição
do poder à razão da lei” (Douzinas, 2009, p. 103-104).
Para a Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão os direitos humanos eram uma forma
política que se comprometia com o senso moral de história e com uma crença de
que a ação do coletivo deve vencer a dominação, opressão e sofrimento. A
declaração anunciava os direitos naturais e imprescritíveis do homem: a
liberdade, a propriedade e a igualdade perante a lei.
Ocorre que, essas
declarações do século XVIII afirmam que os direitos humanos pertencem ao homem,
com a pressuposição de que existe um substratum ou subjectum, ou seja, um homem
específico para quem esses direitos são postos (Douzinas, 2009, p. 106). Isso
porque, havia uma nítida separação entre proprietários e não-proprietários, só
os proprietários é que tinham direito à plena liberdade e à plena cidadania
estabelecidas na Declaração.
A natureza do homem
moderno significa que a realidade empírica é construída a partir de direitos
que são apresentados como sendo prerrogativas eternas do homem, o homem passa a
possuir uma personalidade jurídica abstrata, e se baseia nas afirmativas
exageradas de que os direitos humanos são prerrogativas inerentes a própria
natureza para que possa superar a ideia do divino e passe a ser o sucessor de
Deus como base do ser e do significado. Nesse sentido, a natureza humana foi
inventada como uma justificativa a esses direitos sem precedentes, enunciados
nas Declarações. Quando o homem passa a substituir Deus como fundamento do
significado e da ação, a proteção dada aos direitos desse homem contra o poder
do Estado, torna-se a essência jurídica da modernidade (Douzinas, 2009, p.
109).
Sabe-se que os direitos
humanos são indeterminados e se tornam reais no momento em que o ato que os
declara apresenta os efeitos desses direitos nos mais variados cenários, os
quais somente por serem legitimados na declaração podem estabelecer na prática
tais direitos. Assim, pode-se falar em uma declaração de prerrogativas, que
cria direitos abstratos bem como uma possibilidade de ação e aplicação de tais
direitos. No entanto as “suas aplicações geralmente diferem do sentido sempre
contestado de suas sentenças” (Douzinas, 2009, p. 108). Os direitos humanos
sempre envolvem reivindicações específicas como, por exemplo, liberdade de
expressão, segurança das pessoas, ou seja, os direitos humanos se inauguram a
partir da sua previsão em acordos legais.
Isso leva a crer que a
natureza humana é abstrata e universal, que a essência da espécie humana é
distribuída a todos no nascimento e em partes iguais. No entanto, sabe-se que
isso é uma falácia uma vez que as pessoas não nascem iguais, mas, totalmente desiguais
(Douzinas, 2009).
Os direitos que constam
nas declarações como sendo, em tese, universais e abstratos são, em verdade, os
direitos que são dirigidos a um homem concreto: um indivíduo individual, homem,
burguês, branco. Nesse sentido, Costas Douzinas destaca que “para Burke e Marx,
o sujeito dos direitos não existe. Ou é muito abstrato para ser real, ou muito
concreto para ser universal” (2009, p. 113).
Muito embora os direitos
sejam declarados para o homem universal, o ato que os enuncia (declarações,
acordos) estabelece o poder de um topo particular de associação política, a
nação e seu Estado, para tornar-se o soberano legislador e, depois, de um homem
em particular torna-se o beneficiário desses direito, Este é o cidadão nacional
Assim, as declarações anunciaram a era do indivíduo e com ela também, a era do
Estado, o qual é o espelho do indivíduo. Destaca-se que os direitos humanos e a
soberania nacional nasceram juntos.
A Declaração dos Direitos Humanos é a
precondição da soberania e está inescapavelmente entrelaçada com a legislação.
O soberano moderno chega à sua vida onipotente ao proclamar os direitos dos
cidadãos. Assim, os direitos humanos são tentativas de construir um princípio
protetor contra o Leviatã, com base no reconhecimento do desejo e na sua
instituição como um contra princípio ao desejo do Estado. Se o direito público
moderno é a legislação da política, os direitos humanos são a legislação do
desejo, e seus componentes principais refletem profundamente as características
do Leviatã. (Costas Douzinas, p. 119)
Sob um ponto de vista,
pode se perceber que a modificação do direito natural para direito humano e a
fixação do Direito Moderno passa pelo assentamento do humano como ator
principal da sociedade, estando o Estado obrigado a adaptar-se aos novos
preceitos e submeter-se, em muitas oportunidades, a imposições ou limites da
sua soberania perante a comunidade internacional.
Assim, foi no século
XVIII que se “descobriu” definitivamente os direitos fundamentais, pois nesse
contexto houveram a vitória da revolução liberal na França e a independência
das colônias inglesas nos Estados Unidos da América –Declaração Francesa dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração do Bom Homem de Virgínia
(1976), respectivamente. Inclusive, a Declaração de 1789 encabeçou a primeira
Constituição francesa de 1791. Logo após, numa forma de aperfeiçoamento, houve
a promulgação da Constituição de 1793, conhecida como Jacobina, na qual foram
reconhecidos direito ao trabalho, à proteção contra a pobreza e à educação.
O caminho entre o
desaparecimento dos direitos naturais, no século XIX e o início do século XX, e
os recentes pronunciamentos do triunfo final dos direitos humanos passa por
duas guerras mundiais, um imenso número de conflitos locais e inumeráveis
atrocidades e desastres humanitários.
Uma evidente
transformação dos direitos naturais para os direitos humanos se encontra na
substituição de sua base filosófica e origens institucionais. A humanidade, ou
civilização, do naturalismo, foi substituída pela natureza humana, os franceses
da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão foram ampliados para
abranger toda a humanidade. Um processo sem fim de elaboração de leis
internacionais e humanitárias foi desencadeado, com o objetivo de proteger as
pessoas das supostas afirmações de sua soberania. (Douzinas, 2009, p. 128)
A Convenção de Genebra de
1864 foi o primeiro documento relacionado ao direito humanitário em matéria
internacional, que reconhece um direito idêntico a todos. É um conjunto de leis
e costumes da guerra, visando a minorar o sofrimento dos soldados doentes e
feridos, bem como de populações civis atingidas por um conflito bélico.
(Comparato, 2008).
Os direitos inerentes aos
seres humanos, segundo Comparato, surgem na história da humanidade na medida em
que os povos em suas respectivas épocas vivenciam dores, perdas e sofrimentos,
oriundos da falta de limitação ao poder do rei ou do Estado. Dessa forma,
percebe-se que a dor foi basicamente a condutora da evolução na luta pelos
direitos humanos.
Possivelmente como
resultado dessa afirmação é que os direitos humanos surgem no cenário mundial
após a Segunda Guerra Mundial. A partir de então centenas de tratados,
declarações e acordos foram negociados e adotados pelas Nações Unidas, na busca
pela pacificação da convivência entre os povos de todo o mundo, entre os
momentos marcantes da inauguração dos direitos humanos estão os Tribunais de
Nuremberg e Tóquio, a assinatura da Carta das Nações Unidas (1945) e a adoção
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nesse momento se inicia a
internacionalização dos direitos humanos, uma vez que tais documentos são
assinados por diversos países, que firmam compromissos na busca pela solução
dos conflitos humanitários, sociais, econômicos, culturais, e, em especial, o
respeito aos direitos humanos e fundamentais, sem distinção de raça, religião,
sexo, idioma.
A Carta das Nações Unidas
descreve o cidadão como um sujeito de direitos e deveres, súdito e soberano em
relação ao Estado, onde todos os homens são considerados iguais perante a lei,
sem discriminação de qualquer natureza. Esse documento se inspira, assim como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Francesa dos Direitos
do Homem e do Cidadão.
Já na Declaração
Universal dos Direitos Humanos a afirmação dos direitos fundamentais é,
simultaneamente, universal e positiva: universal, no sentido de que os
destinatários dos direitos são todos os homens, não especificamente de um ou de
outro Estado, como ocorria na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão; positiva, no sentido de que os direitos que se busca a proteção
deverão ser não apenas proclamados, mas efetivamente protegidos até mesmo
contra o próprio Estado que os tenha violado. Assim, os direitos do cidadão
terão se transformado, real e positivamente, em direitos do homem, ou,
minimamente, serão direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo
(Bobbio, 2004).
Os direitos que foram
elencados na Declaração Universal dos Direitos Humanos não são os únicos e
possíveis direitos dos homens, mas sim, são os direitos do homem histórico, no
momento em que foi redigida a declaração, que condizia com o abalo deixado pela
Segunda Guerra Mundial. “A Declaração Universal representa a consciência
histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda
metade do século XX. É uma síntese do passado e uma aspiração para o futuro”
(Bobbio, 2004, p. 33).
Com um pouco mais de meio
século de vigência, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reacendeu a
esperança dos oprimidos ao proporcionar bases legislativas nas lutas pelas
políticas de liberdade, e, ao inspirar a maioria das constituições na
positivação dos direitos da cidadania. Assim, a Declaração cumpriu com um papel
fundamental na história da humanidade, uma vez que lançou a pedra fundamental
aos alicerces de uma nova disciplina jurídica, o Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Ainda, estabeleceu diretrizes para conferir a legitimidade de
qualquer governo, em substituição da força bruta pela força ética.
Ao serem proclamados
direitos universais e inalienáveis, todo o sistema sócio-político existente tem
de ser modificado, sob pena de infringir os novos limites postos. Sendo
proclamado pelos cidadãos e em sendo esses os detentores do poder de criar
leis, não havendo a figura do soberano e estando a racionalidade posta em plano
de destaque, consequentemente, vem a surgir o debate sobre governabilidade e
formas de governo, havendo debates sobre todas as formas até então conhecidas,
inclusive a Democracia.
O homem possuidor de
conteúdo e racionalidade possui a autonomia de promover política e de legislar
tendo vínculo apenas para com si mesmo, e não para com ser ou entidade
superior. O homem moderno reconhece, afirma e se estabelece como portador de um
livre-arbítrio natural. Esse livre arbítrio é o meio pelo qual se reconhece os
direitos naturais, agora humanos. Contudo, a sociedade demanda organização,
sendo essa determinada pelo respeito à legislação posta, permitindo a
contraposição à mesma.
No século passado a
“estatização” dos direitos humanos tomou corpo após a Segunda Grande Guerra.
Inúmeras instituições, também podendo ser consideradas como símbolos, foram
fundadas após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. A
sociedade internacional moveu-se para fixar esses direitos dentro de suas
soberanias, haja vista que inúmeros Estados estavam desfigurados e o rumo legal
que esses Estados poderiam tomar viria ser um problema permanente no futuro.
Classes de direitos, como negativos ou positivos foram fixadas assim como
conceitos de geração foram postos para explicar os mesmos. A aprovação pela
Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal de Direitos Humanos
em 10 de dezembro de 1948 constitui o principal feito no desenvolvimento da
ideia contemporânea de direitos humanos, bem como a Convenção Internacional
sobre a prevenção e punição do crime de genocídio aprovada um dia antes, também
no quadro da ONU; logo, ambas formam os marcos inaugurais da nova fase
histórica dos direitos humanos que se encontra em pleno desenvolvimento.
Costas Douzinas defende
que:
Direitos positivados preenchem a lacuna
entre a realidade empírica e a ideal deixada aberta pela separação francesa
entre homem e cidadão, apesar de seus problemas evidentes. Um Estado que assina
e aceita convenções e declarações de direitos humanos pode alegar ser um Estado
de direitos humanos. Direitos humanos são, então, vistos como um discurso
indeterminado de legitimação do Estado, ou como uma retórica vazia da rebelião,
discurso este que pode ser facilmente co-optado por todos os tipos de oposição,
minoria ou líderes religiosos, cujo projeto político não é humanizar Estados
repressivos, mas substituí-los por seus próprios regimes igualmente homicidas
(2009, p. 129).
Nesse sentido, os
direitos humanos foram um instrumento central para legitimar, nacional e
internacionalmente, a ordem do pós-guerra, num momento em que todos os
princípios do Estado e da organização internacional haviam emergido da guerra
seriamente enfraquecidos.
Assim, importante lembrar
que “os direitos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização
humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis
de transformação e de ampliação” (Bobbio, 2004, p. 32). Apesar de já se ter
evoluído muito, os direitos humanos ainda são algo desejável, que merecem ser
perseguidos para que possam ser reconhecidos, por toda a parte e igual medida.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOS E OS DIREITOS HUMANOS
A democracia é o regime
político que melhor promove e protege os direitos humanos, uma vez que é um
regime fundado na soberania popular, no sentido de que todo poder emana do povo,
e na separação e desconcentração dos poderes. Norberto Bobbio destaca a
democracia como “um conjunto de regras [...] para a solução dos conflitos sem
derramamento de sangue” sendo “o bom governo democrático” aquele que respeita
rigorosamente as regras, donde se conclui, “tranquilamente, que a democracia é
o governo das leis por excelência” (Bobbio, 1986ª, p. 170-1).
A democracia reúne
liberdades civis, alternância no poder, igualdade jurídica e busca pela
igualdade social, participação popular na esfera pública, solidariedade,
respeito à diversidade e tolerância. Norberto Bobbio (2000) destaca seis
universais procedimentais característicos da forma de governo democrática:
1) todos os cidadãos que tenham alcançado
a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo,
devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito
de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele; 2) o
voto de todos os cidadãos deve ter igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos
direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria
opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa
entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser
livres também no sentido em que devem ser colocados em condições de escolher
entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas
distintos e alternativos; 5) seja para as eleições, seja para as decisões
coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será
considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver
o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os
direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria
em igualdade de condições (BOBBIO, 2000, p. 426-427).
Nesse sentido, cada
indivíduo pertencente ao Estado pode participar das decisões políticas que
afetem sua vida privada ou a coletividade. Assim, importante destacar que “o
cidadão é o sujeito que tem liberdade e autonomia para legislar para a
coletividade e, em última instância, para si mesmo. Em tese, cada cidadão, como
membro da soberania popular, é livre para legislar – ou para escolher seus
representantes legislativos – e só deve obediência às leis (votadas
democraticamente)3 ” (Alves, 2005, p. 15).
Percebe-se que o cidadão
constitui-se como elemento essencial para a democracia, uma vez que é ele quem
escolhe os representantes legais que irão formular as leis, em nome deste
cidadão. Assim, quanto maior o número de atores (cidadãos) participando da
tomada das decisões políticas, mais democrática será a sociedade. A democracia
marca a subordinação do poder ao Direito bem como pressupõe a proteção aos
Direitos Humanos, já que a democracia sem proteção aos direitos fundamentais
deixa de existir.
A proteção aos direitos
fundamentais busca limitar o poder do Estado, da religião e de outras
instituições. Implica o reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de
direitos, isto é, a possibilidade de serem atores de sua própria história.
Nesse sentido, o indivíduo recusa a dominação e elege a liberdade como condição
de felicidade central, percebe a si e ao outro como sujeitos de direitos.
O teórico Alain Touraine
(1996a) ensina que a “A democracia é o conjunto das garantias institucionais
que permitem combinar a unidade da razão instrumental com a diversidade das
memórias, a permuta com a liberdade” (1996ª, p.11). Em outras palavras do mesmo
autor, a democracia “é a forma de vida política que dá maior liberdade ao maior
número de pessoas, que protege e reconhece a maior diversidade possível”
(1996ª, p. 25).
Apesar das diversas
concepções de democracia, todas permitem constatar que o Estado democrático
busca a proteção dos cidadãos, que apesar de suas diferenças, devem ser
reconhecidos como portadores de direitos fundamentais. Destaque, ainda, para a
necessidade de proteção às minorias excluídas como forma de garantia da
igualdade desses grupos sociais.
Flávia Piovesan destaca
que a democracia é um conceito em constante modificação, aberto, plural e
dinâmico. A autora destaca duas acepções para o termo democracia, uma no
sentido formal e a outra no sentido material:
Na acepção formal, pode-se afirmar que a
democracia compreende o respeito à legalidade, constituindo o chamado Governo
das Leis, marcado pela subordinação do poder ao Direito. Essa concepção acentua
a dimensão política do conceito de Democracia, na medida que enfatiza a
legitimidade e o exercício do poder político, avaliando quem governa e como se
governa. As regras do jogo democrático representam a civilidade da passagem do
reino da violência para o da não violência.
Por outro lado, na acepção material,
pode-se sustentar que a democracia não se restringe ao primado da legalidade,
mas também pressupõe o respeito aos direitos humanos. Isto é, além da
instauração do Estado de Direito e das instituições democráticas, a
democratização requer o aprofundamento da democracia no cotidiano, por meio do
exercício da cidadania e da efetiva apropriação dos direitos humanos. Nesse
sentido, não há democracia sem o exercício dos direitos e liberdades
fundamentais. A Democracia exige, a igualdade no exercício de direitos civil,
políticos, sociais, econômicos e culturais (2000, p. 228).
A soberania popular é o
eixo central da ideia de democracia, uma vez que é uma ordem política produzida
pela ação humana que não pode ser explicada por um Estado específico, já que a
realização da democracia transcende o Estado. A democracia não se restringe
somente ao zelo pela legalidade, mas também pela proteção aos direitos humanos.
Nesse sentido, é possível assegurar que a igualdade política é condição para a
democracia, mas esta não significa tão somente a atribuição de direitos iguais;
implica compensar as desigualdades, tarefa do Estado democrático.
Todorov (2012) destaca
que a democracia se caracteriza não só por um modo de instituição do poder ou
pela finalidade de sua ação, mas também pela maneira como o poder é exercido. A
palavra-chave aqui é pluralismo, pois se considera que os poderes, por mais
legítimos que sejam, não devem ser todos confiados às mesmas pessoas nem
concentrados nas mesmas instituições. Assim, o Poder Judiciário deve ser
independente do poder político (Legislativo e Executivo) para realizar seus
julgamentos sem qualquer intervenção. Da mesma forma que a economia não pode se
submeter ao poder político, assim como não podem determinados grupos sociais
específicos serem privilegiados em relação aos demais, sob a consequência de,
caso assim não o seja, aumentarem ainda mais as desigualdades e se estar
infringindo os direitos humanos.
A vontade do povo também
defronta com um limite de outra natureza: para evitar sofrer os efeitos de uma
emoção passageira ou de uma manipulação hábil da opinião pública, ela deve
manter-se conforme aos grandes princípios definidos após uma reflexão madura e
inscritos na Constituição do país, ou simplesmente herdados da sabedoria dos
povos.
Deve-se observar a
existência de direitos humanos dentro dos ordenamentos jurídicos e,
principalmente, dentro das ações tomadas pelos Estados, uma vez que os Direitos
Humanos não são limitados a uma parcela populacional, mas se pressupõe que são
entendidos na sua (quase) essência, em maior número, em Estados democráticos.
A democracia advém da
necessidade de diminuição das desigualdades entre classes dominadas e classes
dominantes e estabelece uma tentativa de equilíbrio entre as decisões políticas
e jurídicas, bem como na relação moral entre tais classes. Nesse sistema
político o legislador é uma extensão do próprio homem, visto a figura da
representação democrática. As minorias devem ser reconhecidas como portadoras
de direitos universais, assim como, devem afirmar sua identidade, este
comportamento decorre de um espírito democrático, uma vez que estabelece além
de um reconhecimento em si, um reconhecimento no outro, com suas diferenças e
semelhanças, assim como preceituam os direitos universais do homem. Isto porque
“os direitos existem somente em relação a outros direitos, e as reivindicações
de direitos envolvem o reconhecimento de outros e de seus direitos de redes
trans-sociais de reconhecimento mútuo e de compromisso” (Douzinas, 2009, p.
349).
Cada indivíduo deve ser
protegido com suas próprias características, bem como estas devem ser
respeitadas pelo restante da coletividade. O Estado democrático pressupõe o
respeito e aceitação às diferenças, uma vez que a proteção à identidade também
é um dos objetivos da democracia.
A aceitação e respeito
pelo Outro na sua singularidade (individual e social), a interdependência
significante, a importância da emoção ou dos atos interlocutórios (retórica), o
direito do Outro contar a sua história ou de dar o seu testemunho com a mesma
autoridade e o mesmo valor do ponto de vista da situação comunicativa,
tornam-se elementos-chave ou os modos essenciais da democracia comunicativa,
possibilitando, deste modo, uma maior atenção à ética do cuidado assim como aos
direitos humanos enquanto expressão suprema do cuidado e da solidariedade para
com o Outro (Quinet, 2012).
Apesar de a democracia já
ser reconhecida desde a Grécia Antiga (séculos IX e VIII a.C.), nas
cidades-estados, chamadas de polis4 , como forma de governo, foi a partir do
século XIX que a massa popular passou a ter maior participação nos sistemas
políticos, em especial decorrente da Revolução Industrial que ampliou
significativamente o contingente de trabalhadores urbanos. Até esse momento
histórico, o sufrágio era limitado aos homens, com idade pré-estabelecida,
nacionais, proprietários. A ideia de democracia como governo do povo era
rechaçada pela burguesia. O sistema político democrático foi estabelecido como
padrão somente a partir da segunda metade do século XIX, momento em que o
sufrágio passou a ser praticamente universal.
Com o sufrágio
estabelecido, agora em um número maior de participantes, estes passam a tomar
consciência que o Estado é o “administrador” de muitos de seus direitos e por
tal, deve provê-los. Com isso, após a fixação do Estado Democrático, em uma
ordem crescente entendida como evolutiva, surge a figura do Estado Democrático
de Direito, que é o Estado reconhecedor e provedor de direitos fundamentais aos
seus cidadãos. O Estado deixa de ser apenas omissivo e passa a ser agente ativo
constante na garantia de direitos universais.
No Estado de Direito
desaparece o caráter assistencial da prestação de serviços e os direitos passam
a ser vistos como inerentes à cidadania, ao pressuposto da dignidade da pessoa
humana, ou seja, os direitos passam a constituir um patrimônio do cidadão. O
Welfare State constitui o Estado no qual o cidadão é protegido por mecanismos e
prestações públicas estatais que visam a igualdade e o bem-estar,
independentemente de sua situação social (Morais, 2011).
Pelo Estado de Bem-Estar
Social devem ser garantidos aos cidadãos os direitos mínimos, quais sejam,
renda, alimentação, saúde, habitação educação. Tais direitos devem ser
garantidos não como uma caridade por parte do Estado, mas sim como um direito
político dos cidadãos. Há uma garantia de bem-estar aos cidadãos por meio de
prestações positivas do Estado, que aparece como promotor da qualidade de vida,
tanto dos indivíduos quanto de toda a coletividade. Nesse contexto emerge o
denominado Estado Democrático de Direito.
Ademais, em tal modelo de
Estado as decisões deixam de serem tomadas pela simples vontade do soberano
para serem reguladas e limitadas por normas gerais e abstratas que estabelecem
“quando”, “como” e “em que medida” que a força pode ser utilizada. Assim, o uso
da força passa a ser definido como legítimo e ilegítimo, bem como, entre legal
e ilegal; o Estado de direito busca apresentar uma possibilidade de resolução
de conflitos sem que seja necessário o uso da força, ou, que esta seja
utilizada somente como último recurso.
Nesse sentido, Bobbio
destaca que o Estado de direito celebra o triunfo da democracia, uma vez que a
natureza do Estado de direito e da democracia estão intimamente relacionadas. O
mesmo autor destaca que a universalidade do sufrágio é um elemento fundamental
da democracia, pois, a regra da escolha da maioria pode ocorrer também em
regimes autoritários. Nesse sentido refere que para se caracterizar a
democracia é preciso que exista o sufrágio universal combinado com a decisão
pela maioria.
Resta claro que a
democracia pressupõe que as decisões sejam tomadas pela maioria dos cidadãos, e
que, por cidadãos devem ser entendidos todos aqueles, capazes, que compõem a
coletividade do Estado, sem qualquer tipo de discriminação, seja por cor, raça,
sexo, orientação religiosa (a universalidade do sufrágio se dá a partir de tal
concepção). Na democracia a figura do soberano desaparece; as decisões não mais
se dão pela vontade de um só ser, mas sim, são aplicadas a partir de normas
legais, caracterizando, claramente, que o poder pertence ao povo.
Nesse sentido, Bobbio
(1986ª) destaca duas situações que é preciso levar em consideração para a
conceituação do Estado de direito. A primeira refere-se à superioridade do
governo das leis sobre o governo dos Homens, no qual as leis fundamentais ou
constitucionais é que regulam o exercício dos poderes públicos, com exceção da
possibilidade de os cidadãos se socorrerem do Poder Judiciário em caso de abuso
ou excesso de poder. A segunda é a consideração do impacto trazido pela
constitucionalização dos direitos naturais ao conceito de Estado de Direito:
Na doutrina liberal, Estado de direito
significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis
gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis
ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais
considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio
‘invioláveis’ - esse adjetivo se encontra no art. 2º da constituição italiana
(BOBBIO, 1986ª, p. 170-171).
Assim, o Estado de
Direito impõe à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico, uma
vez que o Estado Democrático de Direito emerge como um
aprofundamento/transformação da fórmula, de um lado, do Estado de Direito e, de
outro, do Welfare State. “Pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que se tem a
permanência em voga da já tradicional questão social, há como que a sua
qualificação pelo caráter transformador que agora se incorpora” (MORAIS, 2011,
p. 41).
Apesar de alguns Estados
não democráticos proclamem-se respeitadores dos direitos humanos, a gama de
direitos contemplados por tal proteção é ínfima, uma vez que, conforme afirma
Beetham (2003, p. 93), a garantia das liberdades básicas é uma condição
necessária para a voz das pessoas serem ativas nas questões públicas e para o
controle popular sobre os governos ficar assegurado.
O Estado de direito
oferece especial atenção ao cidadão, seja quanto aos direitos fundamentais que
devem ser garantidos e protegidos, seja no campo do uso da força por parte do
Estado, que passa a ser regulada por normas gerais, e não mais caso a caso.
Sabe-se que os direitos humanos não existem em um sistema que não seja o
democrático; direitos humanos e Estado democrático são inerentes um ao outro,
em sua essência conceitual.
A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DO EXERCÍCIO
DA CIDADANIA
O termo cidadania, como
atualmente é conhecido, resulta de uma evolução histórica, sendo que surgiu no
momento em que o homem começou a viver em comunidade. Aristóteles (384 a.C.),
um dos discípulos de Platão, foi quem melhor definiu cidadania e quem era
cidadão em sua época ao afirmar que:
(...) a cidade (pólis) é algo complexo
assim como qualquer outro sistema composto de elementos ou de partes, por isso,
sendo necessário, antes de tudo, examinar o que é um cidadão e a quem se deve
dar este nome, visto que a cidade era composta de cidadãos, mas nem todos assim
poderiam ser considerados (ARISTÓTELES, 1996, p. 52).
Nesse sentido, o cidadão
grego definido por Aristóteles vivia na pólis, onde a democracia era exercida
diretamente, através da participação na vida política que se dava através de
discussão, deliberações e votações diretas. Nesse sentido, Aristóteles (1996)
destaca que “aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por
bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado: é um bruto ou um Deus. A
natureza compele os homens a se associarem”.
Cidadão em tal concepção
histórica era aquele que possuía o status privilegiado de participar das
deliberações de interesse público, aquele que, no país em que vive, era
admitido na jurisdição (ARISTÓTELES, 1977, p. 33). Importante destacar que
somente se consideravam cidadãos os homens livres, dos quais se excluíam os
escravos (utilizados como força de trabalho), bem como as mulheres e as
crianças (hierarquicamente subordinadas ao chefe da família) e, finalmente, os
estrangeiros (que não tinham o direito de opinar sobre uma sociedade a qual não
pertenciam).
Muito embora a
participação fosse restrita a poucos homens, a cidadania da Grécia antiga
contribuiu para o desenvolvimento dos princípios modernos desse conceito, uma
vez que os direitos eram bem delineados e consolidaram o poder de governo nas
cidades-estado voltado para o interesse público, onde nos conflitos entre o
indivíduo e a coletividade não havia dúvida de que a última seria resguardada.
Pertencer à comunidade
grega era um privilégio de tamanha valoração que o banimento e a condenação ao
ostracismo5 era a pena mais severa que poderia ser aplicada a um cidadão, sendo
considerada ainda mais grave que a pena de morte, uma vez que a ação de ser
retirado da convivência existente entre os cidadãos correspondia a exclusão da
possibilidade de participação na política. Ao considerar que a cidadania grega
se exercia pela efetiva convivência política, percebe-se que tal ação
(participação política) realizava o homem e o auxiliava no alcance de sua
plenitude, diz-se isto, pois, a felicidade era atingida pela possibilidade de
participação nas decisões da polis, o que somente era permitido aos cidadãos.
Em contraponto, a aquisição de bens materiais e do conforto, por exemplo, não
eram fatores de plenitude, uma vez que o bem-estar relativo às posses não
dependia da interação entre cidadãos para se concretizar. Nesse sentido, os
bens materiais eram menos valorizados do que a participação política na Grécia
antiga.
O significado moderno do
termo cidadania surge a partir da Revolução Americana de 1776 e da Revolução
Francesa (1789), uma vez que esta última representou uma reação da comunidade
contra o sistema de produção e de governo dominantes. Sobre o lema “liberdade,
igualdade e fraternidade” buscava fazer prevalecer o interesse dos cidadãos,
sobre o do Estado (monarca).
A ideia de que os homens
podem viver pelo acordo de suas próprias vontades e pela razão advém do
contratualismo. Nesse sentido, aos homens existe a possibilidade de organizar
um Estado de Direitos com fundamento na valorização dos direitos individuais,
da liberdade de pensamento e expressão, no laicismo, no direito propriedade
privada, acenando com a possibilidade de restaurar a condição de cidadão
àqueles que eram tão somente súditos fiéis, tal ideia foi difundida por Tomas
Hobbes (Do Cidadão), Jean-Jacques Rousseau (O Contrato Social), (O Espírito das
Leis) Montesquieu, entre outros.
Entre os autores acima
destacados, cada um deles possuía um entendimento sobre o significado de
cidadania. Para a teoria hobbesiana, o Estado seria fruto de um contrato social
com a sociedade, sendo que o Estado é contra a natureza do homem, pelo que vive
em constante estado de guerra. Daí surge a necessidade das convenções, a fim de
que seja possibilitada a convivência em sociedade. Assim, Hobbes (1992) defende
que o cidadão é necessário, no entanto, deve existir um soberano que evite o
Estado de guerra entre os homens. Ou seja, o que existe para Hobbes é um pacto de
submissão do cidadão ao Estado.
Rousseau (1996) faz
defesa à liberdade como sendo a exigência ética fundamental para a realização
humana e o contrato social como sendo a base legítima para a preservação da
mesma, que se efetiva por meio da vontade geral. Para o autor é preferível a
liberdade perigosa à servidão tranquila. Jean-Jacques Rousseau (1996) ainda
defende uma maior igualdade entre os que são considerados cidadãos, o que é
possível a partir da elevação da dimensão política.
Já na concepção de Montesquieu
(1995) as diferentes formas de governo formam diferentes cidadãos. Destaca que
no Estado democrático o poder soberano se encontra nas mãos do povo, enquanto
que no Estado aristocrático o poder está apenas nas mãos de parte do povo,
finaliza com o Estado despótico, no qual o poder se encontra nas mãos de apenas
um homem. Ademais, realiza uma exaltação maior aos deveres da cidadania, com
efeito, apenas da dimensão política da cidadania do cidadão e afirma que “Os
cidadãos não podem todos prestar-lhes iguais serviços, porém devemos
igualmente. Em nascendo, contrai-se para com a Pátria (Estado) uma dívida
imensa, que não pode quitar-se jamais (MONTESQUIEU, 1005, p. 116).
Conforme já posto, a
Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789 marcam o início da
modernidade, e, juntamente com elas dos Direitos Humanos. Oswaldo Giacoia
Junior destaca que “à formação histórica da modernidade entendida como
realização do princípio da liberdade subjetiva pertence à fragmentação e a
autonomização das esferas da vida civil (burguês), política (cidadão) e ético
moral (homem)” (GIACOIA JR., 1991, p. 17). No mesmo sentido Lafer (1991) refere
que a Revolução Americana e a Revolução Francesa tiveram o condão de fazer
surgirem os direitos do homem com o propósito de se afirmarem historicamente
como direitos do indivíduo em face ao poder do soberano e do Estado
absolutista.
Os documentos
histórico-jurídicos da época (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e
Declaração de Direitos Americana) ampliaram os direitos políticos relativos à
cidadania ao possibilitarem a abertura para a participação na vida política por
mais cidadãos. Soma-se a isso o fato de que tais documentos reconheceram alguns
direitos civis a todos, perante a lei.
Nesse mesmo momento histórico,
inicia-se também a decadência da cidadania política defendida pelos
iluministas, uma vez que este conceito se reduz ao princípio da nacionalidade,
isto por que a Constituição Francesa de 1789 retirou quase por completo o
conteúdo político do conceito de cidadania. A aquisição da cidadania passa a
ocorrer pelo nascimento ou pela residência em território francês, destaca,
ainda, que o estrangeiro precisa de dez anos de residência no país para poder
ser cidadão. Os direitos políticos, anteriormente intimamente ligados à
concepção de cidadania, passam a ser limitados pela Constituição. Assim, se
consolida o conceito de nacionalidade, o qual se fundamenta na ligação do
indivíduo com o território de onde se origina (JÚNIOR, 2002, p. 73).
O efeito da transição no
conceito de cidadania foi sentido durante o século XX, momento em que se
iniciou uma exaltação às coletividades humanas, conhecidas como Nações. Surgiu,
aqui, uma nova ideologia unificadora na qual o povo, a nação, com toda a sua
individualidade, passou a constituir o sujeito jurídico. No entanto, o
instituto da cidadania continua aprisionado e politicamente neutralizado, agora
sob o fundamento do princípio da nacionalidade, uma vez que este admite a
igualdade apenas perante a lei.
Os direitos individuais
do cidadão foram consagrados no Estado Moderno, uma vez que as declarações
protegem os direitos da cidadania como direitos do homem ou direitos humanos.
Ocorre que, quando tais direitos são consagrados nos ordenamentos jurídicos
nacionais, deixam de serem denominados como direitos humanos, e passam a
constituir os direitos da cidadania dos membros daquela nação. Percebe-se que a
Declaração Francesa de Direitos de 1789, reconhece e consagra os direitos
fundamentais do indivíduo, como direitos do homem e do cidadão, apesar de
deixá-los restritos a uma dimensão civil e política, ou seja, após tais
direitos serem consagrados no ordenamento jurídico interno daquela nação passam
a serem considerados como direitos da cidadania, independentemente de sua
natureza.
Nesse contexto, diversos
países refletiram as Declarações de Direito ao consagrar em suas constituições
os Direitos do Homem como direitos de seus cidadãos. Já os países que refletiam
a teoria liberal, preferiram consagrar apenas como direitos fundamentais
individuais e coletivos. Predominava, ainda, a concepção de cidadania ligada à
dimensão política, na qual a igualdade civil e política eram admitidas somente
perante a lei. O cidadão é aquele individuo nacional que possui direitos
individuais igual, como as obrigações de acordo com a lei.
No final do século XIX os
movimentos sociais passaram a alterar a concepção moderna do direito da
cidadania, cidadão, bem como de seus direitos, deveres e instrumentos de
defesa. Dentre os acontecimentos que tiveram influência direta com a alteração
do significado de proteção da cidadania destacam-se as duas grandes Guerras
Mundiais, que consistiram em enormes violações aos direitos humanos, e,
consequentemente, fizeram surgir a Organização das Nações Unidas (ONU). Através
da ONU novos direitos do homem cidadão foram conquistados, reconhecidos e
declarados em documentos internacionais, destacando a Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU, que repercutiu nas principais Constituições Modernas,
fazendo surgir uma nova concepção de Direito da Cidadania, uma vez que descreve
o cidadão como sujeito de direitos e deveres, súdito e soberano em relação ao
Estado, onde todos os homens são considerados iguais perante a lei, sem
discriminação de raça, credo ou cor.
Para o autor T. H.
Marshall (1967) a plena expressão da cidadania compreende a existência de um
Estado de Bem-Estar Social Liberal-Democrático, no qual a cidadania seria um
“status concedido àqueles que são membros de uma comunidade”. Assim, Marshall destaca
que a cidadania constitui-se de uma dimensão civil, uma política e outra
social, respectivamente composta dos direitos civis, direitos políticos e
direitos sociais. Os direitos civis compreendem os direitos individuais de
liberdade, igualdade, propriedade, liberdade de ir e vir, direito à vida,
segurança individual etc. Os direitos políticos referem-se ao direito de
participação, bem como à liberdade de associação e reunião, de organização
política e sindical, à participação política e eleitoral, direito ao sufrágio
universal. Os direitos sociais dizem respeito aos direitos ao trabalho, saúde,
educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos
meios de vida e bem-estar social.
Em outra concepção,
Norberto Bobbio (2004) destaca que os direitos da cidadania não são
necessariamente ascendentes, uma vez que são históricos, não tendo um fim. Por
serem históricos, os direitos de cidadania são direitos que expressam as lutas
entre diferentes atores sociais. O mesmo autor trata dos direitos humanos, não
apenas dos direitos da cidadania, e destaca que tais direitos sem a garantia
institucional do Estado não se materializam, não tem efetividade e não podem
ser garantidos.
Percebe-se que a noção
moderna de cidadania é indiscutivelmente ligada à liberdade de escolha, ao
sufrágio universal e à democracia representativa. Atualmente, o exercício da
cidadania não se resume ao direito ao voto que elege um representante, Bobbio (2000),
ressalta que:
O ideal democrático supõe cidadãos atentos
à evolução da coisa pública, informados dos acontecimentos políticos, ao
corrente dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas
alternativas apresentadas pela forças políticas e fortemente interessados em
formas diretas ou indiretas de participação. Numerosas pesquisas levadas a cabo
nos últimos decênios demonstram claramente que a realidade é bem diferente
(BOBBIO, 2000, p.889).
Nesse sentido, a ausência
do exercício da cidadania expõe toda a fragilidade do ser humano, como
indivíduo que renunciou a sua condição de agente capaz de modificar a própria
história. Atualmente, é aceito que a cidadania inclua universalmente o direito a
um nível de bem estar cultural, econômico e social, para além dos direitos à
igualdade perante a lei, o homem deve aprender que viver no espaço público
demanda prática e esse mesmo deve se educar, expressar, desenvolver e
incorporar a tolerância, a solidariedade e a generosidade.
Hannah Arendt (1992)
destaca a cidadania como o direito a ter direitos, discordando da nomeação de
Bobbio dos direitos do cidadão como direitos do homem ou humanos. Arendt pensa
que ao denominar os direitos do cidadão como direitos do homem ou humanos, a
expressão fica sem uma dimensão prática de aplicação, permanecendo somente numa
concepção filosófica. A afirmação da autora independe de grande esforço para a
sua comprovação, uma vez que, apesar do desenvolvimento da teoria dos direitos
humanos em todo o mundo, os direitos de todos continuam a ser violentados.
Ao conceituar os direitos
humanos como o direito a ter direitos, “isto significa pertencer, pelo vínculo
da cidadania, a algum tipo de comunidade juridicamente organizada e viver numa
estrutura onde se é julgado por ações e opiniões, por obra do princípio da
legalidade” (LAFER, 1991, p. 154). Nesse sentido, Arendt (1989) refere que a
declaração dos direitos humanos carrega em si um paradoxo: são os direitos mais
relevantes já conquistados, pois se preocupam com a preservação da espécie
humana, mas não podem ser exigidos senão pelo vínculo da cidadania e aqueles
que não os possuem ficam desprotegidos:
Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido
definidos como ‘inalienáveis’ porque se supunha serem independentes de todos os
governos; mas sucedia que no momento em que os seres humanos deixavam de ter um
governo próprio, não restava nenhuma autoridade pare protegê-los e nenhuma
instituição disposta a garantí-los (ARENDT, 1989, p. 325).
Em âmbito brasileiro,
Pedro Demo (1991) destaca que:
(...) uma das conquistas mais importantes
do fim do século passado é o reconhecimento de que a cidadania perfaz o
componente mais fundamental do desenvolvimento social, reservando-se para o mercado
a função indispensável de meio. Este avanço está na esteira das lutas pelos
direitos humanos e pela emancipação das pessoas e dos povos, bem como reflete o
progresso democrático possível (DEMO, 1991, p. 1).
O mesmo autor acredita
que a cidadania é a raiz dos direitos humanos “pois estes somente medram onde a
sociedade se faz sujeito histórico capaz de discernir seu próprio projeto de
desenvolvimento” (1991, p. 3), e conceitua cidadania como a “qualidade social
de uma sociedade organizada sob a forma de direitos e deveres maioritariamente
reconhecidos” (DEMO, 1988, p. 70).
Percebe-se uma variação
no uso e compreensão da palavra cidadania entre os autores apresentados, no
entanto, pode-se concluir que é uma palavra que ainda apresenta diversos significados,
que, inicialmente, foi concebida para significar status. No entanto, com a
evolução da sociedade a cidadania passa a significar uma qualidade de associado
do Estado, que tem direito igual a ter direitos civis, políticos e sociais, em
contrapartida a iguais deveres, conforme democraticamente estabelecido em lei.
Cidadania, subjetivamente, é o conjunto de cidadãos natos ou naturalizados, que
têm iguais deveres e direitos civis, políticos e sociais. Por exemplo,
Cidadania Brasileira, a Cidadania Francesa, a Cidadania Romana. Nesse sentido,
de acordo com Piovesan (1996) cidadania está como substantivo coletivo de
cidadãos, conforme de domínio público, consagrado pelo uso, malgrado ainda não
conste dos dicionários da língua portuguesa nem dos jurídicos.
Assim, a participação
ativa do cidadão na comunidade garante-lhe a proteção estatal. No entanto,
atualmente, o homem preocupa-se em como seus direitos individuais, sociais e
políticos serão respeitados quando fora da nação, à qual se vincula sua
cidadania. Nesse sentido, tem-se que os direitos fundamentais da pessoa humana
(direitos humanos) são dirigidos a todas as pessoas, independentemente de onde
se encontrem, bem como devem proteger a dignidade da pessoa humana em todos os
sentidos, uma vez que são caracterizados por serem inalienáveis,
imprescritíveis, irrenunciáveis, indivisíveis e universais, e devem ser
respeitados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da história a
humanidade vivenciou uma intensa luta pela promoção e reconhecimento dos direitos
humanos. Nesse sentido, os direitos humanos são o resultado de uma evolução
social dos seres humanos, ou seja, uma evolução do indivíduo que percorre cada
um dos períodos históricos buscando sempre o reconhecimento de seus direitos.
Atualmente, os direitos humanos são entendidos como direitos que são inerentes
a qualquer pessoa, caracterizados pelos direitos individuais, sociais e
políticos, que buscam a efetivação da dignidade dos indivíduos enquanto seres
pertencentes à um Estado democrático de direitos. Logo, os direitos humanos
devem ser consagrados e protegidos pelo Estado, sendo fundamentais ao homem.
Neste contexto, a democracia é, sem dúvidas, uma forma efetiva de promover a
cidadania e concretizar os direitos humanos. Ademais, ao longo da evolução
histórica se percebe que tal constatação torna-se cada vez mais intensa, uma
vez que os direitos políticos atingem progressivamente os sujeitos nas
sociedades, e que esses direitos (políticos), como demonstrado, figuram com
destaque na construção do conceito de cidadania.
Desta forma, considerando
que a democracia reúne liberdades civis, alternância no poder, igualdade
jurídica e busca pela igualdade social e econômica, participação popular na
esfera pública, solidariedade, respeito à diversidade e tolerância e que no
Estado democrático cada indivíduo pode participar das decisões políticas que
afetem sua vida privada ou a coletividade, tem-se que o cidadão constitui-se
como o sujeito que tem liberdade e autonomia para legislar para a coletividade
e, em última instância, para si mesmo.
Neste ínterim, o cidadão
representa elemento essencial para a democracia, uma vez que é ele quem escolhe
os representantes legais que irão formular as leis, em nome deste cidadão.
Quanto maior o número de atores-cidadãos participando da tomada das decisões
políticas, mais democrática será a sociedade. A democracia marca a subordinação
do poder ao Direito bem como pressupõe a proteção aos direitos humanos, já que
a democracia sem proteção aos direitos tem sua existência ameaçada dentro do
Estado.
Por fim, tem-se que a
cidadania é essencial para a concretização dos direitos humanos, uma vez que
estes são os direitos mais relevantes já conquistados pelo homem, pois além de
se preocuparem com a preservação e proteção da espécie humana, também podem ser
exigidos através da cidadania, que se caracteriza como a raiz dos direitos
humanos. Percebe-se que ambos os conceitos estão entrelaçados, já que a
cidadania é um componente fundamental para o desenvolvimento social do Estado
democrático de direitos.
Assim, portanto, é
possível verificar-se que a cidadania é indissociável do processo de
desenvolvimento e consagração dos direitos humanos. Aliás, são facetas de uma
mesma história da humanidade em busca de aperfeiçoamento das instituições
jurídicas e políticas que garantam liberdade e dignidade, ou então, em outros
termos, em busca da democracia. Destarte, os direitos humanos são dirigidos à
todos e para todos. São direitos que independem da posição econômica, social,
cultural, política e até mesmo jurídica dos sujeitos, pois devem proteger,
acima de tudo, a dignidade da pessoa humana na sua mais abrangente amplitude,
de forma a legitimar a efetividade e eficácia dos pressupostos que delimitam as
interfaces do “verdadeiro” Estado democrático de direitos.