Andrea Gonçalves Praun
Drª em Ciências da Educação
Universidade de Barcelona
Resumo:
O
presente artigo de revisão de literatura aborda a questão de gênero como um
conceito cuja utilização é relativamente nova, inclusive na psicologia. A
partir da explicitação do conceito de gênero, faz a distinção entre as
categorias gênero e sexo. Apresenta um breve histórico da origem e da
construção desse conceito nas relações sociais. Ressalta a importância do
discurso na construção do preconceito e da discriminação relacionados à mulher
na sociedade, na família e no trabalho. O reconhecimento da diferença entre
sexo e gênero é importante porque representa uma ruptura com os modelos
utilizados anteriormente nos estudos científicos, nos quais os estereótipos de
masculinidade e feminilidade ressaltavam sempre a primazia do homem sobre a
mulher. A introdução da categoria gênero nos discursos é fundamental para que
se aceite a igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a direitos
políticos, econômicos, sociais, familiares e trabalhistas.
Introdução
Este artigo tem como objetivo abordar
conceitos e questões relacionadas ao gênero e sua distinção com relação ao
sexo. O artigo está dividido em cinco seções, incluindo as considerações
finais. A seção 1, Gênero e Sexualidade, apresentam as definições de
gênero e sexo e sua construção e significação social. A seção 2, Histórico
da construção de gênero, propõe uma reflexão sobre o preconceito e
discriminação da mulher e a importância do movimento feminista para a
expressividade da mulher na política, na família e na sociedade. A seção 3, As
questões de gênero, é dedicada a mostrar os estudos sobre gênero e a
constatação de estereótipos sexuais. A seção 4, A linguagem na construção
social do gênero, mostrará a importância do discurso na construção da
subjetividade masculina e feminina, a partir do que lhe é dito em suas relações
com o outro. As considerações finais apresenta a conclusão deste trabalho.
1.
Gênero e sexualidade.
O organismo dos seres vivos apresenta
características estruturais e funcionais peculiares e distintivas entre os
machos e as fêmeas. Gilbert, Hallet e Elldridge (1994), citados por Nogueira
(2001), dizem que para classificar os indivíduos segundo a anatomia humana
utiliza-se o termo sexo. Assim, um indivíduo é macho ou fêmea de acordo
com os cromossomos expressos em seus órgãos genitais. Stoller (1993), citado
por Oliveira e Knöner (2005), porém, procurou provar por meio de suas
investigações que as características de gênero não são garantidas pela
biologia, uma vez que muitos sujeitos apresentam características femininas ou
masculinas em dissonância com sua anatomia. Já a palavra gênero designa,
segundo o senso comum, qualquer categoria, classe, grupo ou família que
apresente determinadas características comuns. Por exemplo, os filmes podem
classificar-se de acordo com suas características em românticos, policiais,
comédias, de ação, dramas, etc. Da mesma maneira, existem vários gêneros
musicais: rock, samba, clássico, romântico. A palavra gênero, na arte, pode
ainda designar estilos distintos: gênero dramático, gênero literário. (OLIVIERA
e KNÖNER, 2005). A partir de 1975, porém, o termo gênero passou a ser
utilizado nos estudos cujo objetivo era compreender as formas de distinção que
as diferenças sexuais induzem em uma sociedade. Assim, gênero passou a
constituir uma entidade moral, política e cultural, ou seja, uma construção
ideológica, em contraposição a sexo, que se mantém como uma especificidade
anatômica. (OLIVIERA e KNÖNER, 2005)
O termo gênero, classificação construída
pela sociedade, contribui para exacerbar a distinção entre indivíduos de sexos
diferentes. Essa classificação possibilita a construção de significados sociais
e culturais que distinguem cada categoria anatômica sexual e que são repassados
aos indivíduos desde a infância. (DEZIN, 1995, apud NOGUEIRA, 2001). Assim, o
conceito de gênero abrange as “características psicológicas, sociais e
culturais que são fortemente associadas com as categorias biológicas de homem e
mulher”. (DEAUX, 1985, apud NOGUEIRA, 2001, p. 9). Para Gilbert, Hallet e
Elldridge (1994), citados por Nogueira (2001, p.9), “gênero é, portanto, o
termo usado no contexto social, podendo ser definido como um esquema para a
categorização dos indivíduos (na perspectiva da cognição social) esquema esse
que utiliza as diferenças biológicas como base para a designação de diferenças
sociais”.
O termo gênero é bastante
complexo, o que permite que seja definido e redefinido. Heberle et al. (2006),
citando diferentes autores, compreendem gênero como uma categoria distinta da
oposição macho/fêmea estabelecida pela biologia, e socialmente construída, que permeia
as interações sociais, uma vez que constitui parte da tecitura argumentativa
dos sentidos. Essas autoras citam também Günthner (1998), para afirmar que a interação
humana constitui um dos meios de construção da realidade social, da transmissão
das estruturas sociais relevantes, bem como da construção e da perpetuação das
identidades sociais. Louro (1997), citado por Oliveira e Knöner (2005), afirma
que o conceito abrangia inicialmente as premissas concernentes às diferenças
biológicas. Percebeu-se, porém, que essa forma de considerar o conceito de
gênero o tornava limitado, uma vez que as características visíveis não
permitiam a ampliação de seu significado, impedindo que fossem incorporadas as
demais características. Para Scott (1990), citado por Oliveira e Knöner (2005),
o conceito de gênero enfatiza todo um sistema de relações que, embora possa
incluir o sexo, não é por ele determinado, nem determina diretamente a
sexualidade. Dessa forma, o termo gênero não poderia expandir-se para outros
contextos sem abranger um novo significado. (LOURO, 1997, citado por OLIVEIRA e
KNÖNER, 2005).
Ao final dos anos 80, esse termo passou
a ser utilizado pelo movimento feminista no Brasil. O conceito de gênero
surgiu, então, como categoria de análise, em estudos que objetivavam demarcar
lugares e distinguir o que é da ordem do masculino e do feminino. A nova
concepção possibilitou, também, analisar as diferenças entre pessoas, coisas e
situações vivenciadas. A utilização do conceito de gênero proporcionou o
afastamento da ideia de determinismo biológico relativa ao sexo. (OLIVEIRA e
KNÖNER, 2005). Para Mitchell (1988, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005), as
sociedades denominam as pessoas de homem e mulher, designando seus atributos
respectivamente por masculinidade e feminilidade. O autor reconhece, no
entanto, que essas qualidades não são fixas. Cada marca distintiva, porém, é
condição da outra, significando que em nenhum momento elas podem ocupar o mesmo
lugar. As informações sobre mulheres fazem parte das informações sobre homens,
e vice-versa; são interdependentes.
O gênero feminino só se constrói em
oposição ao gênero masculino e, nas diferenças, homens e mulheres se constroem
juntos. A palavra diferença, porém, não significa necessariamente contradição,
luta, conflito ou desigualdade. (LAGO, 1999, citado por OLIVEIRA e KNÖNER,
2005). Portanto, o conceito de gênero implica um conceito de relação, uma vez
que o universo das mulheres está inserido no universo dos homens e vice-versa.
Dessa forma, o gênero acontece apenas nas relações. Essas relações não implicam
desigualdade ou poder. Para Sartori (2004, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005),
o gênero constitui uma construção social, abordando as relações de poder entre
homens e mulheres. Essas relações variam em diferentes sociedades e culturas, e
mesmo dentro de uma mesma sociedade. Portanto, não são fixas. Para Martinez
(1997), citado por Pereira e Fernandes Filho (2008), o conceito de gênero
inclui diversos componentes, como identidade, valores, prestígio, regras,
normas, comportamentos, sentimentos, entre outros. As relações de gênero são,
portanto, construídas pelas sociedades. Scott (1990, citado por OLIVEIRA e
KNÖNER, 2005), afirma que se poderia considerar gênero uma busca da
legitimidade institucional para os estudos sobre os movimentos feministas dos
anos 80.
2.
Histórico da construção de gênero
As guerras mundiais da primeira metade
do século XX trouxeram como consequência à escassez da população masculina, que
se encontrava no campo de batalha ou fora vitimada em combate. Surgiu, então, a
necessidade e a possibilidade de trabalho para as mulheres, ocasionando a
configuração de uma nova realidade para elas, sobretudo as nascidas depois da
década de 40. Até essa época, as diferenças entre homens e mulheres
apresentavam um significado equivocado: a mulher não tinha os mesmos direitos
do homem, uma vez que lhe era inferior. (FRAZÃO e ROCHA, s/d). Os movimentos
feministas e de emancipação da mulher, surgidos na segunda metade do século
passado, tinham como objetivo a igualdade de direitos entre os homens e as
mulheres. Entre as causas defendidas por esses movimentos estavam o direito ao
voto e à representação política, o acesso à educação e ao mercado de trabalho,
a liberdade sexual, a igualdade de oportunidades de trabalho e de salários, a
independência. (FRAZÃO e ROCHA, s/d).
No Brasil, a defesa do direito ao voto
pelas mulheres começou, em 1910, com a fundação do Partido Republicano
Feminino, e terminou em 1932, com a promulgação de decreto do Presidente
Getúlio Vargas, estabelecendo o direito de as mulheres votarem e serem votadas.
Foram, portanto, 22 anos de manifestações feministas em prol dessa causa. Nas
décadas de 60 e 70 do Século XX, com a criação do Movimento Feminista pela
Anistia e do Centro da Mulher Brasileira, além do surgimento dos jornais Brasil
- Mulher e Nós Mulheres, o foco da atenção do movimento feminista deslocou-se
para a redemocratização do Brasil. (OLIVEIRA e KNÖNER, 2005). Surge, dessa
forma, uma das mais significativas marcas do movimento feminista: seu caráter
político.
O movimento feminista defendia, também,
que a diferença entre os sexos não pode oportunizar relações de subordinação da
mulher ao homem, nem de opressão da mulher na vida social, profissional ou
familiar. As feministas entendem as qualidades ditas masculinas ou femininas
como conquistas individuais e não de um ou outro sexo. (OLIVEIRA e KNÖNER,
2005). A partir da eclosão dos movimentos feministas, as mulheres deixaram a
posição apagada e de pouca expressão que lhes cabia na sociedade patriarcal
para um estágio de maior visibilidade social e mais acentuado progresso
pessoal. Embora as mulheres tenham obtido avanços em suas tentativas de
emancipação, a atual conjuntura ainda apresenta enormes desafios a essa causa.
(THEBAUD, 1991, apud NOGUEIRA, 2001). No ocidente, as mulheres alcançaram um
nível educacional superior, porém, ainda recebem salários menores do que os
homens têm menor poder social e assumem maiores responsabilidades quanto aos
filhos e outros dependentes. Embora algumas mulheres tenham alcançado posições
de destaque e de chefia nas suas profissões, o mundo público e o poder
institucional ainda mantêm como norma a dominação masculina. Acentua-se, no
discurso dominante, a questão da maternidade para justificar a desigualdade.
(NOGUEIRA, 2001) Evans (1994), citado por Nogueira (2001), diz que as demandas
do feminismo dos anos 80 ainda não foram efetivamente ganhas, embora algumas
das formas de opressão feminina já tenham começado a se modificar. O mundo
institucional, por exemplo, continua seguindo os padrões tradicionalmente
masculinos de vida social. Dessa forma, o feminismo, que já conta com uma
história de dois séculos, mais ou menos, ainda precisa ser discutido e
considerado em seus avanços e necessidades. “Pode-se considerar que o objetivo
principal do feminismo foi e continua a ser a constituição de um espaço
verdadeiramente comum aos homens e às mulheres, apelando para as teorias de
igualdade.” (COLLIN, 1991, apud NOGUEIRA, 2001, p. 8). Essa necessidade gerou
uma grande quantidade de estudos e de debates envolvendo as questões
feministas. Muitos aspectos que afetavam de alguma maneira a vida das mulheres
foram abordados nesses trabalhos e nos meios acadêmicos. Assim, as mulheres,
que durante muitos séculos estiveram ausentes da história da humanidade,
passaram a ter visibilidade, o que trouxe como consequência a problematização
das questões de gênero e sexo. (NOGUEIRA, 2001)
As diferenças entre homens e mulheres
vão além da anatomia de cada organismo, das aparências. Homens e mulheres são
diferentes na maneira de ser, embora não sejam desiguais no que concerne a seus
direitos. Na busca pela igualdade, porém, frequentemente as mulheres adotam
como referencial o modelo social masculino, como se a supressão das diferenças
naturais fosse condição para a igualdade de direitos. Assim, a busca pela
igualdade de direitos entre homens e mulheres ocasionou a confusão entre
igualdade de direitos e igualdade de natureza entre os dois sexos. (FRAZÃO e
ROCHA, s/d). A consequência dessa confusão acarretou entre as mulheres a
insatisfação, expressa com clareza por Lima Filho (2002, citado por FRAZÃO e
ROCHA, s/d): um senso de esterilidade, vazio, desmembramento e traição. Por
terem abraçado a jornada heroica masculina, apesar de bem-sucedidas, saíram-se dela
exauridas e sofridas, tendo sacrificado seus corpos e suas almas.
Além disso, por pensarem equivocadamente
que homens e mulheres possuem uma mesma natureza, buscaram uns nos outros as
mesmas características que encontravam em si mesmos. Isso não favoreceu a
compreensão mútua nem facilitou a comunicação. Pelo contrário, a supressão ou
banalização das diferenças acarretou novas dificuldades e conflitos. (FRAZÃO e
ROCHA, s/d). “Quando as diferenças entre feminino e masculino são suprimidas,
impedimos a constituição de uma identidade em consonância com a identidade de
gênero, o que gera conflitos tanto intrapsíquicos quanto relacionais.” (FRAZÃO
e ROCHA, s/d, p. 28). Esses mesmos autores dizem ainda que, quando masculino e
feminino são integrados, ampliam-se nossas capacidades e nosso poder. Para
Frazão e Rocha (s/d), vivemos em uma sociedade que ainda tende a valorizar os
aspectos masculinos em detrimento dos femininos. Na verdade, a integração
harmônica de ambos é componente essencial ao processo de desenvolvimento e
crescimento, enquanto que a supervalorização dos aspectos masculinos trouxe,
para algumas mulheres, implicações psíquicas importantes.
3.
As questões de gênero
Temas que se enquadram atualmente nas
questões de gênero, como os relacionados às diferenças sexuais, têm sido objeto
de estudo da psicologia há quase um século. Questões psicológicas envolvendo
raça e sexo estiveram abrigadas historicamente no campo da psicologia
diferencial, por causa da dificuldade que esse tipo de variável
representava para a perspectiva experimental. Na maioria das explicações
psicológicas desse campo, preponderou o pressuposto biológico, considerando
naturais as diferenças constitutivas dos seres humanos. (LAGO et al., 2008).
A análise da revista Psychological
Abstracts, da década de 70, revela que o aumento do interesse pelos
estereótipos, naquela época, se deveu quase inteiramente aos estudos sobre
estereótipos sexuais. Essa revista procurou estudar o gênero, investigando os
atributos masculinos e femininos da época. Para isso, analisou os tipos de
comportamentos que a sociedade esperava encontrar nos homens e mulheres, ou
seja, os estereótipos masculinos e femininos. Esses estereótipos ressaltavam as
qualidades consideradas masculinas e patologizavam as qualidades femininas,
ocasionando efeitos negativos nas mulheres que não se adequavam ao padrão
idealizado. Segundo o estereótipo feminino, as mulheres continuavam sendo
submissas, reprodutoras e invisíveis na sociedade. (AMÂNCIO, 2001, citado por
OLIVEIRA e KNÖNER, 2005).
Amâncio (2001), citado por Oliveira e
Knöner (2005), diz também que esses estudos apontam os estereótipos sexuais
como um fenômeno generalizado na sociedade americana. Apesar das mudanças
obtidas, esses estereótipos ainda permaneciam praticamente inalterados. Os
estudos apontavam, também, para os efeitos que os estereótipos causavam na
identidade das mulheres, provocando baixa auto-estima, tendência ao insucesso
ou ao fracasso. Esses efeitos incluíam, ainda, a patologia, porque o modelo
ideal de adulto mentalmente equilibrado era baseado no estereótipo masculino,
aos quais as mulheres recorriam para se autodescrever. A tentativa, expressa
pelo feminismo, de ultrapassar a opressão feminina, impulsionou estudos sobre
as causas das desigualdades sociais baseadas nas diferenças de sexo/gênero,
bem como das formas de melhor combater essas desigualdades. Como consequência,
diferentes disciplinas sentiram o efeito desses estudos em seu domínio de
conhecimento, entre elas a sociologia, a antropologia e a psicologia.
(NOGUEIRA, 2001)
Com a constatação da igualdade
intelectual entre homem e mulher, buscaram-se novas possibilidades de
justificar a divisão sexual do trabalho, na identificação dos temperamentos masculinos
e femininos. Associaram-se, então, à mulher características subjetivas, como a
afetividade e a docilidade, vinculando-se ao homem a agressividade e a
racionalidade. Foi legitimada a distinção entre as duas formas de ser e de agir
conforme o sexo biológico. O efeito dos processos de dominação foi tomado,
portanto, pela psicologia e pelas demais ciências, como a principal razão para
a circunscrição do trabalho da mulher ao universo doméstico e familiar. (LAGO
et al., 2008).
Essa perspectiva predominou até metade
do século XX. Era utilizada para explicar por que, nos contextos urbanos
industrializados, apenas os homens assumiam posições de destaque, cargos de
maior responsabilidade poder e status social. No período depois da Segunda
Guerra, considerava-se importante a presença feminina no lar para garantir a
saúde mental das crianças, num momento histórico em que a ordem social
precisava ser restabelecida. O afastamento da mulher em função do trabalho
apresentava-se como um problema social capaz de gerar distúrbios psicológicos
infantis. (LAGO et al., 2008). Segundo Amâncio (2001, apud LAGO et al., 2008),
na década de 60, a psicóloga clínica feminista Betty Friedan publica estudos
criticando os mitos da feminilidade da cultura americana no pós-guerra. Para
ela, esses mitos haviam sido criados para justificar a submissão da mulher ao
isolamento doméstico.
Esses estudos foram amplamente
divulgados, servindo de embasamento para outros estudos que se opunham aos
estereótipos sexuais. Amâncio ressalta, ainda, que as primeiras menções à
categoria gênero surgem na psicologia em estudos publicados na década de
70, abordando as características masculinas e femininas relacionadas ao sexo
biológico. Esses estudos foram importantes à medida que representaram a
primeira possibilidade de distinção entre sexo e gênero nas pesquisas sobre
identidade. (LAGO et al., 2008). Na segunda metade do Século XX, a psicologia
foi marcada pelo debate entre essencialização, que considera o gênero um
atributo do sujeito, uma propriedade estável da personalidade; e socialização,
cujo pressuposto se desloca da biologia para o contexto. A socialização
considera o gênero como resultado de processos sociais e culturais.
Destaca-se, nessa época, a teoria do
papel social de Alice Eagly, para quem os papéis sociais atuam sobre o
comportamento das pessoas, disso resultando as diferenças sexuais. Ao longo de
seu desenvolvimento, as crianças se apropriam desses comportamentos. (LAGO et
al., 2008). Como a psicologia não é neutra, o conjunto de determinantes
sociais, históricos, políticos e filosóficos interfere na formulação de modelos
e conceitos da psicologia. Esses determinantes condicionam a importância dos
problemas e as interpretações mais adequadas a eles. Dessa forma, a psicologia
social, a partir de determinado momento, passou a estudar as mulheres,
incorporando-as à ciência. Nogueira (2001) ensina que desde os estudos acerca
das diferenças associadas ao sexo de pertença, passando pelas críticas a esses
trabalhos, à apresentação de novas teorias (androginia, por exemplo) até à
introdução do termo gênero nas pesquisas, toda esta evolução se foi construindo
pelo “entrelaçar” de diferentes teorias e perspectivas provenientes, quer das
teorias feministas, quer do debate ao nível da construção do conhecimento e da
epistemologia positivista característico de todo o período da modernidade.
(NOGUEIRA, 2001, p. 9)
A partir das críticas ao determinismo
biológico e das críticas feministas do movimento da segunda vaga, na psicologia
o conceito de sexo foi substituído pelo conceito de gênero, utilizado
atualmente. Essa mudança política tornou-se importante porque deixa de
compreender a diferença como determinada biologicamente, e por isso mesmo,
imutável, passando a considerá-la do ponto de vista psicossocial e, dessa
forma, como algo passível de mudança. (HOLLWAY, 1994, apud NOGUEIRA, 2001). É
por meio do gênero que o sujeito se identifica. Dessa forma, a análise do
sujeito se faz levando em conta o gênero em que ele está inserido. Para Azeredo
(1998) citado por Oliveira e Knönen (2005), na psicologia, utilizar o gênero
faz uma grande diferença, porque permite compreender o sujeito a partir da
ideia que ele faz de si mesmo, como homem ou mulher. Estudos realizados por
médicos e psiquiatras ao final dos anos 60 mostraram que mudar o sexo biológico
de um indivíduo era mais fácil do que alterar o sentimento de masculinidade ou
feminilidade que esse indivíduo possuía, ou seja, seu sexo psicológico. Os
resultados desses estudos revelaram a autonomia da identidade psicológica em
relação à anatomia fisiológica, conduzindo, assim, para a emergência do
conceito de gênero. (AMÂNCIO, 2001, citado por OLIVEIRA e KNÖNEN, 2995).
4.
A linguagem na construção social do gênero.
A ideologia dominante, por meio de seu
discurso construído, partilhado e difundido tanto em nível disciplinar como
político, consegue manter uma ordem social que perpetua as desigualdades e o
sexismo. Assim, é importante considerar a linguagem desse discurso como
elemento fundamental da construção da subjetividade masculina e da feminina, e
da manutenção das relações sociais e de poder, para que se possa teorizar a
respeito da construção social do gênero. (NOGUEIRA, 2001). Percebe-se, por
exemplo, que, apesar de a mulher ter ingressado no mercado de trabalho, e das
revoltas sociais buscando a igualdade social, continua existindo na sociedade a
discriminação sexual da mulher. Para Amâncio (1989), citado por Nogueira
(2001), a entrada de mulheres de diferentes classes sociais em diversos setores
do mundo do trabalho, embora represente mudanças estruturais, não garantiu
mudanças significativas na função feminina no seio da família, nem possibilitou
necessariamente uma alteração de seu status social.
Além disso, embora tenham obtido
importantes conquistas como resultado dos movimentos feministas, na segunda
metade do século XX as mulheres ainda sofriam preconceitos e discriminações.
Era comum a mulher ver-se diante do dilema, imposto pelo parceiro, da escolha
entre a carreira profissional e o casamento. (FRAZÃO E ROCHA, s/d). O mundo
está em constante mudança, e as relações entre homens e mulheres acompanham
essa mudança. Daí a necessidade de se estudar as relações de gênero sob o
enfoque de novas abordagens, fundamentadas em novas idéias, e a partir de novas
perspectivas teóricas. Atualmente, portanto, homens e mulheres veem diante da
necessidade de re-configurar de maneiras totalmente novas suas relações, tanto
objetiva quanto subjetivamente. (FRAZÃO E ROCHA, s/d)
Segundo diversos autores, a análise do
discurso apresenta-se como uma nova perspectiva para a abordagem dos temas
relacionados com a psicologia social. Llombart (1995, apud NOGUEIRA, 2001, p.
89), “a análise do discurso permite introduzir de uma forma aberta e explícita
a dimensão política, quer na definição e interpretação dos fenômenos estudados
quer na forma como são abordados”. Potter e Wetherell (1987, apud NOGUEIRA,
2001) entendem que não se pode considerar a linguagem apenas como um código
necessário para a comunicação humana. Ela é muito mais do que isso, um elemento
completamente envolvido na elaboração do pensamento e na interpretação da
mensagem comunicada. Esses estudiosos afirmam que os autores da análise do
discurso ressaltam a importância da linguagem para o estudo dos fenômenos sociais,
uma vez que é ela que possibilita de forma penetrante a interação entre os
indivíduos, e dela depende a maior parte das atividades humanas. Coulthard
(1997, apud NOGUEIRA, 2001, p. 89) afirma, por sua vez, que a linguagem “parece
dirigir as percepções dos indivíduos e „faz coisas‟ acontecerem, construindo e
criando as interações sociais e os diversos mundos sociais”.
Sobre a linguagem, Parker (1992, apud
NOGUEIRA, 2001) considera que os diversos textos sociais têm um papel
fundamental na construção da própria vida, sejam eles escritos ou falados, spots
publicitários ou comunicações não verbais. A linguagem revela, ainda, as
relações de poder, compreendendo-se poder como atributo de quem têm maior
valor. As palavras também remetem à posição valorativa do homem ou da mulher.
Utiliza-se, por exemplo, a concordância no masculino plural sempre que houver
na frase um elemento masculino e um feminino. Termos como pais servem
para designar ambos os genitores, ou seja, o pai e a mãe. (OLIVEIRA e KNÖNEN,
2005). Molon (1999), citado por Oliveira e Knönen (2005), concorda com Vygotsky
sobre a função de contato social desempenhada pela palavra, que é, ao mesmo
tempo, constituinte do comportamento social e da consciência. A identidade
pessoal é construída na relação com o outro. Assim, o ser humano social se
constrói pela palavra, pelo discurso dos outros. Ele constrói sua subjetividade
a partir do que lhe é dito em suas relações com o outro. É a distinção orgânica
que define a diferença entre o masculino e o feminino. Mas essa distinção se
completa num sistema de relações sociais, dentro de contextos históricos, tendo
como elemento fundamental a palavra, pois tudo o que é dito inscreve-se no
sujeito.
Considerações
finais
O emprego do termo gênero para
designar as diferenças entre homens e mulheres é recente. Sua introdução nas
pesquisas de diversas áreas, inclusive a psicologia, remonta à segunda metade
do século XX, quando eclodiram os movimentos feministas. Desde então, tem sido
utilizado distintamente do conceito de sexo. O reconhecimento da diferença de
concepção entre sexo e gênero é importante porquanto representa uma ruptura com
os modelos utilizados anteriormente nos estudos científicos. Enquanto o estudo
se limitava às diferenças anatômicas entre os sexos, os estereótipos de
masculinidade e de feminilidade ressaltavam sempre a primazia do homem sobre a
mulher, e o caráter eminentemente domiciliar e familiar das funções femininas.
A partir do momento em que se reconhece a categoria gênero, ela se torna
fundamental para compreender a igualdade entre homens e mulheres no que diz
respeito a direitos políticos, econômicos, sociais, familiares, trabalhistas...
Há também o reconhecimento do direito de emancipação da mulher na sociedade. No
entanto, a simples utilização do termo gênero ainda não é suficiente para
explicitar as formas como se constrói em sociedade a dominação masculina, nem
as razões que legitimam as diferenças entre o papel social de homens e
mulheres. Também não é suficiente para explicitar as razões nem as formas como
as relações são construídas, como funciona como se alteram. Por outro lado, a
categoria sexo também se mostra incapaz de justificar as diferenças entre
homens e mulheres, porque a identidade se constrói a partir dos
relacionamentos. As concepções de masculinidade e feminilidade dependem do
momento histórico, das leis, das religiões, da organização familiar e política,
de diferentes circunstâncias. São esses fatores que levam a sociedade a
construir, em determinado momento histórico, a concepção de gênero. As
concepções de sexo e de gênero são construídas socialmente nas inter-relações
humanas, nas quais a palavra tem importância fundamental. É por meio da palavra
que se estabelecem e se mantêm as relações sociais e de poder. No discurso
vigente na segunda metade do Século XX ainda prevaleciam à discriminação e o
preconceito contra as mulheres. E, atualmente, embora a mulher tenha obtido
avanços em suas reivindicações, e tenha inclusive ingressado no mercado de
trabalho, continua existindo a discriminação sexual da mulher. Essa
discriminação transparece em textos sociais falados e escritos. Daí a
importância de se estudar as questões de sexo e de gênero também a partir de
novas abordagens e de novas perspectivas teóricas, como a análise do discurso.
O gênero é resultado de diferentes aprendizagens que o indivíduo acumula, a
partir de suas relações interpessoais, ao longo de suas experiências de vida
dentro de um contexto histórico, político e social. É marca que o indivíduo
carrega indelevelmente, de tal forma que se torna mais fácil modificar a
configuração anatômica (sexo) de alguém do que sua configuração psicológica
(gênero).
REFERÊNCIAS
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Lílian Meyer; ROCHA, Sérgio Lizias C. de O. Gestalt e Gênero. Livro
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Revista
Húmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N° 1