quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Como o feminismo mudou a minha relação com a minha mãe


Minha mãe trabalhava em minas de carvão. E fazia o serviço doméstico. Eu me lembro de ela dizer que uma das imagens e lembranças mais bonitas de sua infância era o clarão que as chamas dos fornos faziam quando eram abertos, o que me provocou imensa tristeza, pois era uma memória associada a um trabalho que ela não deveria estar fazendo.
E de dizer sempre que sua tia era capaz de esfregar-lhe o rosto na privada e fazê-la limpar novamente caso a limpeza não estivesse a contento. Ela acordava de madrugada para fazer comida para os “camaradas”, os homens que trabalhavam na fazenda, e cozinhava em cima de um banquinho, pois mal alcançava o fogão a lenha.
Não brincava, não ia à escola, não recebia visitas, não tinha afeto, nunca foi pega no colo. Não foi criança. Não ia ao dentista e a instrução da tia era para que todos os dentes das crianças que estivessem doendo fossem arrancados, assim não precisava pagar pelo serviço profissional. Por ironia ou graça da vida, minha irmã em breve se formará dentista.
Quando finalmente conseguiu fugir do lugar, voltou para a cidade e foi trabalhar na casa de um casal conhecido. A patroa implicava com suas roupas, a fazia comer na cozinha e a impedia de ficar perto do patrão, pois ela não podia ficar no mesmo recinto em que ele estivesse. A patroa a seguia de perto.
Cansada de tudo aquilo, arranjou o segundo emprego; começou como babá e dormia na casa da família. Nem tinha o próprio quarto, pois dormia com as crianças. Nada de privacidade, de individualidade. Um dia fez a comida e os patrões gostaram. Passou a cozinhar e a limpar também, ganhando um pouco mais. Nunca teve registro assinado em carteira, mas sempre disse que era tratada como se fosse da família pelos segundos empregadores.
Em 1988, eu nasci e minha mãe deixou de trabalhar fora de casa, em casa de “família”.
Durante muito tempo eu achava estranho e às vezes irritante o fato de minha mãe gostar tanto de brinquedos. Ela cuidava dos nossos com o maior zelo. Às vezes mal podíamos brincar com eles, pois ficavam em cima do guarda-roupa apenas para serem apreciados. Cuidava com bastante zelo das minhas bonecas (as quais eu não apreciava muito), em especial o “Bonecão da Estrela” que eu havia ganhado em um aniversário, comprado com muito custo. Eu não entendia esse gosto da minha mãe por brinquedos, achava estranho, vergonhoso. Minha mãe, já adulta, gostar de brinquedo desse jeito? Nunca havia parado pra pensar que ela não teve sequer uma boneca de pano.
Também ficava brava por minha mãe não ter voltado a estudar e não ter insistido com meu pai quando ele disse que não havia necessidade. Eu achava interessante a vida do meu pai, o fato de ele não perder tempo com picuinha de criança ou com limpeza, de ler jornais toda noite, de entender de futebol e política. Minha mãe passava o dia limpando, não gostava de ler, adorava novela e era extremamente grata à tia que a humilhou, espancou e lhe tirou da escola. Aquilo me irritava e constrangia. “Ela me ensinou tudo o que eu sei”, ela dizia.
Eu me indignava com o que parecia uma resignação, eu, que sempre fiz questão de não calar nada, e dizia que não seria daquele jeito, resignada com o que a vida me trouxesse. Eu queria que minha mãe se levantasse, e gritasse, e tivesse uma outra vida.
Também me irritava tanta preocupação com limpeza e com a aparência, com o cuidar do corpo, estar sempre apresentável para os outros.
Aí eu me tornei feminista. No início, por volta dos 14 anos, uma feminista que resumia o movimento a salários iguais, acesso a profissões historicamente associadas aos homens e mais participação política. Eu continuava achando que mulheres, como minha mãe, que ficavam em casa, eram preguiçosas, pouco esforçadas e até mesmo exploradoras dos maridos, pobres coitados. Não via aquilo como trabalho. Não era uma vida interessante que uma menina que crescia nos anos 2000 deveria almejar, após tanta luta nas décadas anteriores.
Eu queria a vida das mulheres que eu aprendera a admirar por estudarem e trabalharem, e irem às ruas, intelectualizadas, politizadas.
Na minha infância, tínhamos acesso a poucas coisas. Brinquedos caros eram raros. Os marcantes dados por meu pai — na minha cabeça, quem me dava tudo era meu pai — foram o “Bonecão” e uma caixa de Lego. Eu queria muito frequentar escola particular, mas não havia qualquer condição, e eu me irritava. Tirar fotografia era coisa rara, pois revelar os filmes custava uma nota. E eu me perguntava por que minha mãe não “trabalhava” para que a gente tivesse uma vida melhor e com mais bens materiais.
Por mais que nós nos relacionássemos com pessoas como nós, com a mesma trajetória e mentalidade, de classe média baixa, as mães de minhas amigas tinham uma profissão — bancárias, comerciantes, enfermeiras, secretárias, professoras. A minha não, mas eu não tocava no assunto. Uma vez até menti que a minha era bancária, porque achava o termo bonito e porque não queria dizer que minha mãe “não fazia nada”, como sempre ouvi dizer em relação às mães que não trabalhavam “fora”. Ela também não gostava que mencionássemos que não terminou o ensino fundamental e eu nunca dizia que isso não era uma vergonha e que ela não tinha culpa.
Por muito tempo eu fui violenta, ingrata e arrogante com minha mãe, cheia de mim porque eu seria diferente, eu me esforçaria, iria para a escola e para a faculdade, eu faria diferente, eu leria livros e não ficaria dentro de casa apartando briga de filho e me preocupando se há vestígio de pó nos móveis.
Mas, por meio de muita porrada e também de amor de pessoas ao meu redor e até estranhas, o meu feminismo passou a ver além de salários iguais e acesso a profissões “masculinas”. Meu feminismo passou a considerar questões de classe e a ver a forma desvalorizada com a qual o serviço doméstico em casa e em casa dos outros é tratado. Aquele serviço que não é produtivo, que não tem valor. A trajetória de tantas meninas que são “dadas” para famílias em troca de comida e uma cama. E a questão racial por trás dessas trajetórias, num país onde o trabalho doméstico é herdeiro direto da mentalidade escravocrata e o quartinho de empregada é a nova senzala.
E eu passei a ver a minha mãe como a mulher forte que ela é, dona de uma resiliência, um humor, uma serenidade e uma inteligência ímpares, simples, pragmática, direta, um conhecimento e um modo de ser que não está nos livros que eu estudei, porque o conhecimento das mulheres nunca foi valorizado, porque trabalho de mãe não é trabalho.
Passei a vê-la como a pessoa sobre quem todos nós nos apoiamos e que permitiu ao meu pai trabalhar, ler jornal, debater política e ver futebol, meu pai, que deu tudo de si pelos filhos, mas que nada seria sem aquele trabalho invisível de minha mãe. A mim ser jornalista, mestranda em estudos de gênero, futura advogada. Um trabalho invisível, diário e desvalorizado que permitiu a outras mulheres, naquela época suas patroas, e agora eu, ter uma profissão e ir além do espaço doméstico que eu sempre rejeitei.
Mas eu não queria que fosse assim, pois meu objetivo não é, em si, louvar os sacrifícios de minha mãe. Nenhuma mulher deveria se sacrificar assim.
A trajetória de menina vítima de trabalho infantil, sem direito a escola, afeto, brinquedo e saúde, mesmo quando superada, não é motivo de orgulho em si, porque nenhuma pessoa deveria ser submetida a isso. A mentalidade meritocrática, de superação e perseverança esconde uma estrutura machista, elitista e racista que nos impede de ver que não superaremos esse cenário individualmente, com poucas histórias a serem contadas no Globo Repórter, e que darão a falsa impressão aos que estão no andar de cima de que, se fulano tem força de vontade, fulano consegue, e de que não há dívidas históricas a serem pagas a mulheres, negros, indígenas.
Por outro lado, essas histórias existiram e ainda existem. Vão existir por muito tempo. E elas precisam ser levadas em conta pelo feminismo. Elas precisam ser visibilizadas. Não adianta debater feminismo na academia e se esquecer de que há mulheres sacrificando suas vidas, seu tempo, lazer e a convivência com seus próprios filhos para que outras mulheres se libertem, seja sua mãe ou sua “empregada”. A libertação não será individual.
No fim, o que queria dizer é que o feminismo mudou minha forma de me relacionar com minha mãe, mas que foi preciso que esse feminismo mudasse a si mesmo antes de tudo. Que ele se tornasse interseccional. Inclusive, que ele fizesse o caminho de volta pra casa, que se voltasse um pouco para o espaço doméstico, quando durante toda a sua história o que ele queria era ir para o espaço público. Minha mãe não foi uma mulher que precisou ficar longe enquanto eu crescia, caso de milhares de outras, cuidando dos filhos dos outros. Mas ela sacrificou muita coisa por outras pessoas e também por mim e durante parte da minha militância ela ficou esquecida.
Meu objetivo aqui não é apontar caminhos, nem em uma direção nem em outra. Não é louvar de forma acrítica o trabalho doméstico e a maternagem como atividades primordiais da mulher, como se esse sacrifício fosse natural e maravilhoso, nem dizer que o ideal é que as mulheres tenham profissão e que a mulher que fica em casa é escravizada e vítima sempre. Os tempos mudaram. Há mudanças e fissuras e há permanências, estruturas. O que quero dizer é que nem todas já podem escolher, e que precisamos visibilizar o trabalho doméstico dentro do feminismo, sem demonizá-lo nem louvá-lo.
Precisamos falar sobre trabalho doméstico coletivizado, seja o cuidado com as crianças, seja com a alimentação e a limpeza. Precisamos falar sobre trabalho doméstico e questões raciais. Sobre a divisão igualitária de tarefas entre homens e mulheres, pais e mães, e além, porque a família não pode dar conta de tudo. Sobre qual mulher avança e qual mulher fica pra trás. Sobre a feminista e suas relações com sua mãe e com a trabalhadora doméstica que trabalha em sua casa.
Que o feminismo permita às mulheres amar a admirar as mulheres ao seu redor como eu aprendi a amar e a admirar minha mãe e mulheres como minha mãe, em toda a sua complexidade e simplicidade, força e beleza. E, mais do que isso, a serem justas umas com as outras e a lutar pelo direito de todas, porque o feminismo é afeto, mas é mais do que isso: é a busca e a realização de direitos e de justiça.
*Vanessa Fogaça Prateano é jornalista, mestranda em Estudos de Gênero, estudante de Direito e feminista.

3 comentários:

  1. O feminismo surgiu não para segregar ou menosprezar o passado, apesar de muitas vezes aparentar dever. Devido aos livros, principalmente didáticos, é visível que a mulher sempre foi subjugada como inferior, tanto que até a palavra Homem serve para se referir aos seres humanos em geral. Como já dizia Albert Einstein " é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito", principalmente aquele que nos segue desde os primórdios da humanidade onde o homem neandertal era o caçador e protetor e a mulher fonte de herdeiros para aumentar o efetivo. Eu acredito que o feminismo sincero que busca a equidade veio para exigir algo, que não deveria precisar de ser lembrado, que já deveria nos pertencer. Entretanto é nítido que um dos reais problemas de preconceito e segregação vem devido á uma falta de respeito terrível que perpetua na sociedade onde nós precisamos opinar na vida alheia, mas não gostamos quando a direção dos olhares são para nós. o ser humano precisa compreender e aprender não vulgarmente "cuidar da própria vida" mas sim seguir pelo menos com um dos direitos fundamentais básicos humanos que é o respeito pela religião, culto e em pessoa, prezando pela vida.
    Relacionado contemporaneamente o feminismo com a visão às mulheres do passado, que viveram e possuem orgulho de cuidar de casa e vangloriar pessoas que provavelmente sujeitaram-na para uma vida sem dignidade, é necessário que sejam tratadas com honra por passarem por coisas inimagináveis e ainda estarem vivas e capazes de mudar aquilo que um dia as feriu para que nunca ocorra com as outras e que seja passado para aos novos a gratidão, não só através da fé, por poderem viver e terem tido a capacidade de perdoar e amar outro indivíduo mesmo quando ele "não merece".
    É necessário que ensinemos as crianças á não serem separatistas quanto ao sexo e sim a capacidade onde meninos e meninas são capazes de fazerem as mesmas coisas através de esforço e determinação. E ainda sim ensinar que da forma que você se sente é o que importa, que autoconfiança e autoestima são propulsores do sucesso.
    O real problema de todo Humano é sua educação pois é dela que vem a atuações futuras do indivíduo onde se ele aprender que se ele nascer "errado" será para sempre, (de acordo com Hobbes), o Meio determina o ser. Historicamente é nos ensinado e passado mesmo que inconsciente para as próximas gerações, informações contidas no livro Inteligência Emocional, situada na memoria primitiva.
    Se for criada uma educação imparcial com equidade de gêneros e valorização do auto, talvez fosse capaz de existir uma sociedade livre de preconceitos.

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  2. A mulher nunca foi devidamente valorizada, durantes anos usadas como moeda de troca ou simplesmente um ventre a dar a luz á um herdeiro homem, não importava sua classe social nunca era valorizada a não ser que possuísse um marido da alta classe, não possuíam quaisquer direitos. Ao dar a luz á uma menina suas mães choravam em tristeza pela vida da filha, nascer mulher era considerado maldição. O feminismo surgiu para que os direitos atribuídos ao homem também fossem as mulheres, colocando-as no mesmo patamar destes. Mas isso causou uma visão preconceituosa para aquelas mulheres que ficam em casa, cuidando dos filhos e do lar, preferem não ir trabalhar fora mesmo podendo, essas são tachadas de preguiçosas e incompetentes. É interessante o fato de que se a mulher escolhe trabalhar é tachada de irresponsável e que negligencia seus deveres com os filhos e etc, mas quando decide ficar em casa cuidando do lar também á preconceito.
    O feminismo é simplesmente a valorização dos atos das mulheres, não importando em que setor a mesma queira trabalhar e se prefere ficar em casa cuidando dos filhos, ela é essencial em qualquer lugar que estiver, o feminismo não surgiu para formar mais um preconceito sobre essa mulheres sofridas que lutam a muito tempo por seus direitos, o feminismo veio para mostrar ao mundo que devemos ser valorizadas pelo que somos, e somos vitais a humanidade. Devemos dar mais valor a esse assunto, pois não acredito que possa existir um mundo sem mulheres.
    CPMG HCR-RAQUEL CRISTINY OLIVEIRA ASSIS- 1"O"-NOTURNO

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  3. De acordo com o dicionário, o feminismo é uma doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade. Contudo, casos relatados cotidianamente evidenciam, mesmo que tenham sido obtidos avanços, que a igualdade de gênero ainda é ínfima. Dessa forma, é inegável que tal problemática presente e constante tenha raízes históricas, culturais e ideológicas. Pode-se mencionar, ainda, uma sociedade individualista e preconceituosa
    No que tange ao trabalho doméstico, é ensinado que lavar louça e roupa, limpar a casa, fazer comida e cuidar dos filhos é trabalho relacionado à mulher. Diante disso, desde a infância, meninas brincam de ''cozinha'' e de serem ''mães'' de bonecas, enquanto os meninos brincam com carros e bola.
    Prova disso é que no último final de semana, no meio de uma reunião da minha família, na hora de lavar a louça do almoço, contaram o número de mulheres presentes para realizar a tarefa. Homens não, pois lavar a louça não é ''coisa de homem''. Até quando esse tipo de trabalho vai ser ligado somente à mulher?
    Portanto, é indubitável a exigência de soluções imediatas, para que a próxima geração receba uma educação diferente. Os pais, aos cabe a importante função de serem bons exemplos, devem começar em casa, dividindo as tarefas e mostrando aos seus filhos que, tanto o homem como a mulher, são indivíduos detentores dos mesmos direitos e deveres.

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