sábado, 21 de outubro de 2017

SEXUALIDADE, GÊNERO E SUAS RELAÇÕES DE PODER

Andrea Gonçalves Praun
Drª em Ciências da Educação
Universidade de Barcelona

Resumo:

O presente artigo de revisão de literatura aborda a questão de gênero como um conceito cuja utilização é relativamente nova, inclusive na psicologia. A partir da explicitação do conceito de gênero, faz a distinção entre as categorias gênero e sexo. Apresenta um breve histórico da origem e da construção desse conceito nas relações sociais. Ressalta a importância do discurso na construção do preconceito e da discriminação relacionados à mulher na sociedade, na família e no trabalho. O reconhecimento da diferença entre sexo e gênero é importante porque representa uma ruptura com os modelos utilizados anteriormente nos estudos científicos, nos quais os estereótipos de masculinidade e feminilidade ressaltavam sempre a primazia do homem sobre a mulher. A introdução da categoria gênero nos discursos é fundamental para que se aceite a igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a direitos políticos, econômicos, sociais, familiares e trabalhistas.

Introdução

Este artigo tem como objetivo abordar conceitos e questões relacionadas ao gênero e sua distinção com relação ao sexo. O artigo está dividido em cinco seções, incluindo as considerações finais. A seção 1, Gênero e Sexualidade, apresentam as definições de gênero e sexo e sua construção e significação social. A seção 2, Histórico da construção de gênero, propõe uma reflexão sobre o preconceito e discriminação da mulher e a importância do movimento feminista para a expressividade da mulher na política, na família e na sociedade. A seção 3, As questões de gênero, é dedicada a mostrar os estudos sobre gênero e a constatação de estereótipos sexuais. A seção 4, A linguagem na construção social do gênero, mostrará a importância do discurso na construção da subjetividade masculina e feminina, a partir do que lhe é dito em suas relações com o outro. As considerações finais apresenta a conclusão deste trabalho.

1. Gênero e sexualidade.

O organismo dos seres vivos apresenta características estruturais e funcionais peculiares e distintivas entre os machos e as fêmeas. Gilbert, Hallet e Elldridge (1994), citados por Nogueira (2001), dizem que para classificar os indivíduos segundo a anatomia humana utiliza-se o termo sexo. Assim, um indivíduo é macho ou fêmea de acordo com os cromossomos expressos em seus órgãos genitais. Stoller (1993), citado por Oliveira e Knöner (2005), porém, procurou provar por meio de suas investigações que as características de gênero não são garantidas pela biologia, uma vez que muitos sujeitos apresentam características femininas ou masculinas em dissonância com sua anatomia. Já a palavra gênero designa, segundo o senso comum, qualquer categoria, classe, grupo ou família que apresente determinadas características comuns. Por exemplo, os filmes podem classificar-se de acordo com suas características em românticos, policiais, comédias, de ação, dramas, etc. Da mesma maneira, existem vários gêneros musicais: rock, samba, clássico, romântico. A palavra gênero, na arte, pode ainda designar estilos distintos: gênero dramático, gênero literário. (OLIVIERA e KNÖNER, 2005). A partir de 1975, porém, o termo gênero passou a ser utilizado nos estudos cujo objetivo era compreender as formas de distinção que as diferenças sexuais induzem em uma sociedade. Assim, gênero passou a constituir uma entidade moral, política e cultural, ou seja, uma construção ideológica, em contraposição a sexo, que se mantém como uma especificidade anatômica. (OLIVIERA e KNÖNER, 2005)

O termo gênero, classificação construída pela sociedade, contribui para exacerbar a distinção entre indivíduos de sexos diferentes. Essa classificação possibilita a construção de significados sociais e culturais que distinguem cada categoria anatômica sexual e que são repassados aos indivíduos desde a infância. (DEZIN, 1995, apud NOGUEIRA, 2001). Assim, o conceito de gênero abrange as “características psicológicas, sociais e culturais que são fortemente associadas com as categorias biológicas de homem e mulher”. (DEAUX, 1985, apud NOGUEIRA, 2001, p. 9). Para Gilbert, Hallet e Elldridge (1994), citados por Nogueira (2001, p.9), “gênero é, portanto, o termo usado no contexto social, podendo ser definido como um esquema para a categorização dos indivíduos (na perspectiva da cognição social) esquema esse que utiliza as diferenças biológicas como base para a designação de diferenças sociais”.

O termo gênero é bastante complexo, o que permite que seja definido e redefinido. Heberle et al. (2006), citando diferentes autores, compreendem gênero como uma categoria distinta da oposição macho/fêmea estabelecida pela biologia, e socialmente construída, que permeia as interações sociais, uma vez que constitui parte da tecitura argumentativa dos sentidos. Essas autoras citam também Günthner (1998), para afirmar que a interação humana constitui um dos meios de construção da realidade social, da transmissão das estruturas sociais relevantes, bem como da construção e da perpetuação das identidades sociais. Louro (1997), citado por Oliveira e Knöner (2005), afirma que o conceito abrangia inicialmente as premissas concernentes às diferenças biológicas. Percebeu-se, porém, que essa forma de considerar o conceito de gênero o tornava limitado, uma vez que as características visíveis não permitiam a ampliação de seu significado, impedindo que fossem incorporadas as demais características. Para Scott (1990), citado por Oliveira e Knöner (2005), o conceito de gênero enfatiza todo um sistema de relações que, embora possa incluir o sexo, não é por ele determinado, nem determina diretamente a sexualidade. Dessa forma, o termo gênero não poderia expandir-se para outros contextos sem abranger um novo significado. (LOURO, 1997, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005).

Ao final dos anos 80, esse termo passou a ser utilizado pelo movimento feminista no Brasil. O conceito de gênero surgiu, então, como categoria de análise, em estudos que objetivavam demarcar lugares e distinguir o que é da ordem do masculino e do feminino. A nova concepção possibilitou, também, analisar as diferenças entre pessoas, coisas e situações vivenciadas. A utilização do conceito de gênero proporcionou o afastamento da ideia de determinismo biológico relativa ao sexo. (OLIVEIRA e KNÖNER, 2005). Para Mitchell (1988, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005), as sociedades denominam as pessoas de homem e mulher, designando seus atributos respectivamente por masculinidade e feminilidade. O autor reconhece, no entanto, que essas qualidades não são fixas. Cada marca distintiva, porém, é condição da outra, significando que em nenhum momento elas podem ocupar o mesmo lugar. As informações sobre mulheres fazem parte das informações sobre homens, e vice-versa; são interdependentes.

O gênero feminino só se constrói em oposição ao gênero masculino e, nas diferenças, homens e mulheres se constroem juntos. A palavra diferença, porém, não significa necessariamente contradição, luta, conflito ou desigualdade. (LAGO, 1999, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005). Portanto, o conceito de gênero implica um conceito de relação, uma vez que o universo das mulheres está inserido no universo dos homens e vice-versa. Dessa forma, o gênero acontece apenas nas relações. Essas relações não implicam desigualdade ou poder. Para Sartori (2004, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005), o gênero constitui uma construção social, abordando as relações de poder entre homens e mulheres. Essas relações variam em diferentes sociedades e culturas, e mesmo dentro de uma mesma sociedade. Portanto, não são fixas. Para Martinez (1997), citado por Pereira e Fernandes Filho (2008), o conceito de gênero inclui diversos componentes, como identidade, valores, prestígio, regras, normas, comportamentos, sentimentos, entre outros. As relações de gênero são, portanto, construídas pelas sociedades. Scott (1990, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005), afirma que se poderia considerar gênero uma busca da legitimidade institucional para os estudos sobre os movimentos feministas dos anos 80.

2. Histórico da construção de gênero

As guerras mundiais da primeira metade do século XX trouxeram como consequência à escassez da população masculina, que se encontrava no campo de batalha ou fora vitimada em combate. Surgiu, então, a necessidade e a possibilidade de trabalho para as mulheres, ocasionando a configuração de uma nova realidade para elas, sobretudo as nascidas depois da década de 40. Até essa época, as diferenças entre homens e mulheres apresentavam um significado equivocado: a mulher não tinha os mesmos direitos do homem, uma vez que lhe era inferior. (FRAZÃO e ROCHA, s/d). Os movimentos feministas e de emancipação da mulher, surgidos na segunda metade do século passado, tinham como objetivo a igualdade de direitos entre os homens e as mulheres. Entre as causas defendidas por esses movimentos estavam o direito ao voto e à representação política, o acesso à educação e ao mercado de trabalho, a liberdade sexual, a igualdade de oportunidades de trabalho e de salários, a independência. (FRAZÃO e ROCHA, s/d).

No Brasil, a defesa do direito ao voto pelas mulheres começou, em 1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino, e terminou em 1932, com a promulgação de decreto do Presidente Getúlio Vargas, estabelecendo o direito de as mulheres votarem e serem votadas. Foram, portanto, 22 anos de manifestações feministas em prol dessa causa. Nas décadas de 60 e 70 do Século XX, com a criação do Movimento Feminista pela Anistia e do Centro da Mulher Brasileira, além do surgimento dos jornais Brasil - Mulher e Nós Mulheres, o foco da atenção do movimento feminista deslocou-se para a redemocratização do Brasil. (OLIVEIRA e KNÖNER, 2005). Surge, dessa forma, uma das mais significativas marcas do movimento feminista: seu caráter político.

O movimento feminista defendia, também, que a diferença entre os sexos não pode oportunizar relações de subordinação da mulher ao homem, nem de opressão da mulher na vida social, profissional ou familiar. As feministas entendem as qualidades ditas masculinas ou femininas como conquistas individuais e não de um ou outro sexo. (OLIVEIRA e KNÖNER, 2005). A partir da eclosão dos movimentos feministas, as mulheres deixaram a posição apagada e de pouca expressão que lhes cabia na sociedade patriarcal para um estágio de maior visibilidade social e mais acentuado progresso pessoal. Embora as mulheres tenham obtido avanços em suas tentativas de emancipação, a atual conjuntura ainda apresenta enormes desafios a essa causa. (THEBAUD, 1991, apud NOGUEIRA, 2001). No ocidente, as mulheres alcançaram um nível educacional superior, porém, ainda recebem salários menores do que os homens têm menor poder social e assumem maiores responsabilidades quanto aos filhos e outros dependentes. Embora algumas mulheres tenham alcançado posições de destaque e de chefia nas suas profissões, o mundo público e o poder institucional ainda mantêm como norma a dominação masculina. Acentua-se, no discurso dominante, a questão da maternidade para justificar a desigualdade. (NOGUEIRA, 2001) Evans (1994), citado por Nogueira (2001), diz que as demandas do feminismo dos anos 80 ainda não foram efetivamente ganhas, embora algumas das formas de opressão feminina já tenham começado a se modificar. O mundo institucional, por exemplo, continua seguindo os padrões tradicionalmente masculinos de vida social. Dessa forma, o feminismo, que já conta com uma história de dois séculos, mais ou menos, ainda precisa ser discutido e considerado em seus avanços e necessidades. “Pode-se considerar que o objetivo principal do feminismo foi e continua a ser a constituição de um espaço verdadeiramente comum aos homens e às mulheres, apelando para as teorias de igualdade.” (COLLIN, 1991, apud NOGUEIRA, 2001, p. 8). Essa necessidade gerou uma grande quantidade de estudos e de debates envolvendo as questões feministas. Muitos aspectos que afetavam de alguma maneira a vida das mulheres foram abordados nesses trabalhos e nos meios acadêmicos. Assim, as mulheres, que durante muitos séculos estiveram ausentes da história da humanidade, passaram a ter visibilidade, o que trouxe como consequência a problematização das questões de gênero e sexo. (NOGUEIRA, 2001)

As diferenças entre homens e mulheres vão além da anatomia de cada organismo, das aparências. Homens e mulheres são diferentes na maneira de ser, embora não sejam desiguais no que concerne a seus direitos. Na busca pela igualdade, porém, frequentemente as mulheres adotam como referencial o modelo social masculino, como se a supressão das diferenças naturais fosse condição para a igualdade de direitos. Assim, a busca pela igualdade de direitos entre homens e mulheres ocasionou a confusão entre igualdade de direitos e igualdade de natureza entre os dois sexos. (FRAZÃO e ROCHA, s/d). A consequência dessa confusão acarretou entre as mulheres a insatisfação, expressa com clareza por Lima Filho (2002, citado por FRAZÃO e ROCHA, s/d): um senso de esterilidade, vazio, desmembramento e traição. Por terem abraçado a jornada heroica masculina, apesar de bem-sucedidas, saíram-se dela exauridas e sofridas, tendo sacrificado seus corpos e suas almas.

Além disso, por pensarem equivocadamente que homens e mulheres possuem uma mesma natureza, buscaram uns nos outros as mesmas características que encontravam em si mesmos. Isso não favoreceu a compreensão mútua nem facilitou a comunicação. Pelo contrário, a supressão ou banalização das diferenças acarretou novas dificuldades e conflitos. (FRAZÃO e ROCHA, s/d). “Quando as diferenças entre feminino e masculino são suprimidas, impedimos a constituição de uma identidade em consonância com a identidade de gênero, o que gera conflitos tanto intrapsíquicos quanto relacionais.” (FRAZÃO e ROCHA, s/d, p. 28). Esses mesmos autores dizem ainda que, quando masculino e feminino são integrados, ampliam-se nossas capacidades e nosso poder. Para Frazão e Rocha (s/d), vivemos em uma sociedade que ainda tende a valorizar os aspectos masculinos em detrimento dos femininos. Na verdade, a integração harmônica de ambos é componente essencial ao processo de desenvolvimento e crescimento, enquanto que a supervalorização dos aspectos masculinos trouxe, para algumas mulheres, implicações psíquicas importantes.

3. As questões de gênero

Temas que se enquadram atualmente nas questões de gênero, como os relacionados às diferenças sexuais, têm sido objeto de estudo da psicologia há quase um século. Questões psicológicas envolvendo raça e sexo estiveram abrigadas historicamente no campo da psicologia diferencial, por causa da dificuldade que esse tipo de variável representava para a perspectiva experimental. Na maioria das explicações psicológicas desse campo, preponderou o pressuposto biológico, considerando naturais as diferenças constitutivas dos seres humanos. (LAGO et al., 2008).

A análise da revista Psychological Abstracts, da década de 70, revela que o aumento do interesse pelos estereótipos, naquela época, se deveu quase inteiramente aos estudos sobre estereótipos sexuais. Essa revista procurou estudar o gênero, investigando os atributos masculinos e femininos da época. Para isso, analisou os tipos de comportamentos que a sociedade esperava encontrar nos homens e mulheres, ou seja, os estereótipos masculinos e femininos. Esses estereótipos ressaltavam as qualidades consideradas masculinas e patologizavam as qualidades femininas, ocasionando efeitos negativos nas mulheres que não se adequavam ao padrão idealizado. Segundo o estereótipo feminino, as mulheres continuavam sendo submissas, reprodutoras e invisíveis na sociedade. (AMÂNCIO, 2001, citado por OLIVEIRA e KNÖNER, 2005).

Amâncio (2001), citado por Oliveira e Knöner (2005), diz também que esses estudos apontam os estereótipos sexuais como um fenômeno generalizado na sociedade americana. Apesar das mudanças obtidas, esses estereótipos ainda permaneciam praticamente inalterados. Os estudos apontavam, também, para os efeitos que os estereótipos causavam na identidade das mulheres, provocando baixa auto-estima, tendência ao insucesso ou ao fracasso. Esses efeitos incluíam, ainda, a patologia, porque o modelo ideal de adulto mentalmente equilibrado era baseado no estereótipo masculino, aos quais as mulheres recorriam para se autodescrever. A tentativa, expressa pelo feminismo, de ultrapassar a opressão feminina, impulsionou estudos sobre as causas das desigualdades sociais baseadas nas diferenças de sexo/gênero, bem como das formas de melhor combater essas desigualdades. Como consequência, diferentes disciplinas sentiram o efeito desses estudos em seu domínio de conhecimento, entre elas a sociologia, a antropologia e a psicologia. (NOGUEIRA, 2001)
Com a constatação da igualdade intelectual entre homem e mulher, buscaram-se novas possibilidades de justificar a divisão sexual do trabalho, na identificação dos temperamentos masculinos e femininos. Associaram-se, então, à mulher características subjetivas, como a afetividade e a docilidade, vinculando-se ao homem a agressividade e a racionalidade. Foi legitimada a distinção entre as duas formas de ser e de agir conforme o sexo biológico. O efeito dos processos de dominação foi tomado, portanto, pela psicologia e pelas demais ciências, como a principal razão para a circunscrição do trabalho da mulher ao universo doméstico e familiar. (LAGO et al., 2008).

Essa perspectiva predominou até metade do século XX. Era utilizada para explicar por que, nos contextos urbanos industrializados, apenas os homens assumiam posições de destaque, cargos de maior responsabilidade poder e status social. No período depois da Segunda Guerra, considerava-se importante a presença feminina no lar para garantir a saúde mental das crianças, num momento histórico em que a ordem social precisava ser restabelecida. O afastamento da mulher em função do trabalho apresentava-se como um problema social capaz de gerar distúrbios psicológicos infantis. (LAGO et al., 2008). Segundo Amâncio (2001, apud LAGO et al., 2008), na década de 60, a psicóloga clínica feminista Betty Friedan publica estudos criticando os mitos da feminilidade da cultura americana no pós-guerra. Para ela, esses mitos haviam sido criados para justificar a submissão da mulher ao isolamento doméstico.

Esses estudos foram amplamente divulgados, servindo de embasamento para outros estudos que se opunham aos estereótipos sexuais. Amâncio ressalta, ainda, que as primeiras menções à categoria gênero surgem na psicologia em estudos publicados na década de 70, abordando as características masculinas e femininas relacionadas ao sexo biológico. Esses estudos foram importantes à medida que representaram a primeira possibilidade de distinção entre sexo e gênero nas pesquisas sobre identidade. (LAGO et al., 2008). Na segunda metade do Século XX, a psicologia foi marcada pelo debate entre essencialização, que considera o gênero um atributo do sujeito, uma propriedade estável da personalidade; e socialização, cujo pressuposto se desloca da biologia para o contexto. A socialização considera o gênero como resultado de processos sociais e culturais.

Destaca-se, nessa época, a teoria do papel social de Alice Eagly, para quem os papéis sociais atuam sobre o comportamento das pessoas, disso resultando as diferenças sexuais. Ao longo de seu desenvolvimento, as crianças se apropriam desses comportamentos. (LAGO et al., 2008). Como a psicologia não é neutra, o conjunto de determinantes sociais, históricos, políticos e filosóficos interfere na formulação de modelos e conceitos da psicologia. Esses determinantes condicionam a importância dos problemas e as interpretações mais adequadas a eles. Dessa forma, a psicologia social, a partir de determinado momento, passou a estudar as mulheres, incorporando-as à ciência. Nogueira (2001) ensina que desde os estudos acerca das diferenças associadas ao sexo de pertença, passando pelas críticas a esses trabalhos, à apresentação de novas teorias (androginia, por exemplo) até à introdução do termo gênero nas pesquisas, toda esta evolução se foi construindo pelo “entrelaçar” de diferentes teorias e perspectivas provenientes, quer das teorias feministas, quer do debate ao nível da construção do conhecimento e da epistemologia positivista característico de todo o período da modernidade. (NOGUEIRA, 2001, p. 9)

A partir das críticas ao determinismo biológico e das críticas feministas do movimento da segunda vaga, na psicologia o conceito de sexo foi substituído pelo conceito de gênero, utilizado atualmente. Essa mudança política tornou-se importante porque deixa de compreender a diferença como determinada biologicamente, e por isso mesmo, imutável, passando a considerá-la do ponto de vista psicossocial e, dessa forma, como algo passível de mudança. (HOLLWAY, 1994, apud NOGUEIRA, 2001). É por meio do gênero que o sujeito se identifica. Dessa forma, a análise do sujeito se faz levando em conta o gênero em que ele está inserido. Para Azeredo (1998) citado por Oliveira e Knönen (2005), na psicologia, utilizar o gênero faz uma grande diferença, porque permite compreender o sujeito a partir da ideia que ele faz de si mesmo, como homem ou mulher. Estudos realizados por médicos e psiquiatras ao final dos anos 60 mostraram que mudar o sexo biológico de um indivíduo era mais fácil do que alterar o sentimento de masculinidade ou feminilidade que esse indivíduo possuía, ou seja, seu sexo psicológico. Os resultados desses estudos revelaram a autonomia da identidade psicológica em relação à anatomia fisiológica, conduzindo, assim, para a emergência do conceito de gênero. (AMÂNCIO, 2001, citado por OLIVEIRA e KNÖNEN, 2995).

4. A linguagem na construção social do gênero.

A ideologia dominante, por meio de seu discurso construído, partilhado e difundido tanto em nível disciplinar como político, consegue manter uma ordem social que perpetua as desigualdades e o sexismo. Assim, é importante considerar a linguagem desse discurso como elemento fundamental da construção da subjetividade masculina e da feminina, e da manutenção das relações sociais e de poder, para que se possa teorizar a respeito da construção social do gênero. (NOGUEIRA, 2001). Percebe-se, por exemplo, que, apesar de a mulher ter ingressado no mercado de trabalho, e das revoltas sociais buscando a igualdade social, continua existindo na sociedade a discriminação sexual da mulher. Para Amâncio (1989), citado por Nogueira (2001), a entrada de mulheres de diferentes classes sociais em diversos setores do mundo do trabalho, embora represente mudanças estruturais, não garantiu mudanças significativas na função feminina no seio da família, nem possibilitou necessariamente uma alteração de seu status social.

Além disso, embora tenham obtido importantes conquistas como resultado dos movimentos feministas, na segunda metade do século XX as mulheres ainda sofriam preconceitos e discriminações. Era comum a mulher ver-se diante do dilema, imposto pelo parceiro, da escolha entre a carreira profissional e o casamento. (FRAZÃO E ROCHA, s/d). O mundo está em constante mudança, e as relações entre homens e mulheres acompanham essa mudança. Daí a necessidade de se estudar as relações de gênero sob o enfoque de novas abordagens, fundamentadas em novas idéias, e a partir de novas perspectivas teóricas. Atualmente, portanto, homens e mulheres veem diante da necessidade de re-configurar de maneiras totalmente novas suas relações, tanto objetiva quanto subjetivamente. (FRAZÃO E ROCHA, s/d)

Segundo diversos autores, a análise do discurso apresenta-se como uma nova perspectiva para a abordagem dos temas relacionados com a psicologia social. Llombart (1995, apud NOGUEIRA, 2001, p. 89), “a análise do discurso permite introduzir de uma forma aberta e explícita a dimensão política, quer na definição e interpretação dos fenômenos estudados quer na forma como são abordados”. Potter e Wetherell (1987, apud NOGUEIRA, 2001) entendem que não se pode considerar a linguagem apenas como um código necessário para a comunicação humana. Ela é muito mais do que isso, um elemento completamente envolvido na elaboração do pensamento e na interpretação da mensagem comunicada. Esses estudiosos afirmam que os autores da análise do discurso ressaltam a importância da linguagem para o estudo dos fenômenos sociais, uma vez que é ela que possibilita de forma penetrante a interação entre os indivíduos, e dela depende a maior parte das atividades humanas. Coulthard (1997, apud NOGUEIRA, 2001, p. 89) afirma, por sua vez, que a linguagem “parece dirigir as percepções dos indivíduos e „faz coisas‟ acontecerem, construindo e criando as interações sociais e os diversos mundos sociais”.

Sobre a linguagem, Parker (1992, apud NOGUEIRA, 2001) considera que os diversos textos sociais têm um papel fundamental na construção da própria vida, sejam eles escritos ou falados, spots publicitários ou comunicações não verbais. A linguagem revela, ainda, as relações de poder, compreendendo-se poder como atributo de quem têm maior valor. As palavras também remetem à posição valorativa do homem ou da mulher. Utiliza-se, por exemplo, a concordância no masculino plural sempre que houver na frase um elemento masculino e um feminino. Termos como pais servem para designar ambos os genitores, ou seja, o pai e a mãe. (OLIVEIRA e KNÖNEN, 2005). Molon (1999), citado por Oliveira e Knönen (2005), concorda com Vygotsky sobre a função de contato social desempenhada pela palavra, que é, ao mesmo tempo, constituinte do comportamento social e da consciência. A identidade pessoal é construída na relação com o outro. Assim, o ser humano social se constrói pela palavra, pelo discurso dos outros. Ele constrói sua subjetividade a partir do que lhe é dito em suas relações com o outro. É a distinção orgânica que define a diferença entre o masculino e o feminino. Mas essa distinção se completa num sistema de relações sociais, dentro de contextos históricos, tendo como elemento fundamental a palavra, pois tudo o que é dito inscreve-se no sujeito.

Considerações finais

O emprego do termo gênero para designar as diferenças entre homens e mulheres é recente. Sua introdução nas pesquisas de diversas áreas, inclusive a psicologia, remonta à segunda metade do século XX, quando eclodiram os movimentos feministas. Desde então, tem sido utilizado distintamente do conceito de sexo. O reconhecimento da diferença de concepção entre sexo e gênero é importante porquanto representa uma ruptura com os modelos utilizados anteriormente nos estudos científicos. Enquanto o estudo se limitava às diferenças anatômicas entre os sexos, os estereótipos de masculinidade e de feminilidade ressaltavam sempre a primazia do homem sobre a mulher, e o caráter eminentemente domiciliar e familiar das funções femininas. A partir do momento em que se reconhece a categoria gênero, ela se torna fundamental para compreender a igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a direitos políticos, econômicos, sociais, familiares, trabalhistas... Há também o reconhecimento do direito de emancipação da mulher na sociedade. No entanto, a simples utilização do termo gênero ainda não é suficiente para explicitar as formas como se constrói em sociedade a dominação masculina, nem as razões que legitimam as diferenças entre o papel social de homens e mulheres. Também não é suficiente para explicitar as razões nem as formas como as relações são construídas, como funciona como se alteram. Por outro lado, a categoria sexo também se mostra incapaz de justificar as diferenças entre homens e mulheres, porque a identidade se constrói a partir dos relacionamentos. As concepções de masculinidade e feminilidade dependem do momento histórico, das leis, das religiões, da organização familiar e política, de diferentes circunstâncias. São esses fatores que levam a sociedade a construir, em determinado momento histórico, a concepção de gênero. As concepções de sexo e de gênero são construídas socialmente nas inter-relações humanas, nas quais a palavra tem importância fundamental. É por meio da palavra que se estabelecem e se mantêm as relações sociais e de poder. No discurso vigente na segunda metade do Século XX ainda prevaleciam à discriminação e o preconceito contra as mulheres. E, atualmente, embora a mulher tenha obtido avanços em suas reivindicações, e tenha inclusive ingressado no mercado de trabalho, continua existindo a discriminação sexual da mulher. Essa discriminação transparece em textos sociais falados e escritos. Daí a importância de se estudar as questões de sexo e de gênero também a partir de novas abordagens e de novas perspectivas teóricas, como a análise do discurso. O gênero é resultado de diferentes aprendizagens que o indivíduo acumula, a partir de suas relações interpessoais, ao longo de suas experiências de vida dentro de um contexto histórico, político e social. É marca que o indivíduo carrega indelevelmente, de tal forma que se torna mais fácil modificar a configuração anatômica (sexo) de alguém do que sua configuração psicológica (gênero).

REFERÊNCIAS
FRAZÃO, Lílian Meyer; ROCHA, Sérgio Lizias C. de O. Gestalt e Gênero. Livro Pleno, s/d.
HEBERLE, Viviane Maria; Ostermann, Ana Cristina; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2006.
LAGO, Mara Coelho de Souza; TONELI, Maria Juraci Filgueiras; BEIRAS, Adriano; VAVASSORI, Maria Barreto; MÜLLER, Rita de Cássia Flores. Gênero e pesquisa em psicologia social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
NOGUEIRA, Conceição. Um novo olhar sobre as relações sociais de gênero: feminismo e perspectivas críticas na psicologia social. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
OLIVEIRA, Anay Stela; KNÖNER, Salete Farinon. A construção do conceito de gênero: uma reflexão sob o prisma da psicologia. Trabalho de Conclusão de Curso. Blumenau: FURB, 2005.
PEREIRA, Erik Giuseppe Barbosa; FERNANDES FILHO, José. Ciência e Motricidade humana: um novo espaço para o debate das relações de gênero. Buenos Aires: Revista Digital, ano 13, n. 124, setembro de 2008.
  

Revista Húmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N° 1

Nenhum comentário:

Postar um comentário