segunda-feira, 23 de abril de 2018

Uma arapuca para as esquerdas


Quando iremos acordar e perceber a manipulação reacionária da agenda nacional?
por Márcio Rogério Silveira* — publicado 23/04/2018 00h10, última modificação 18/04/2018 17h33
                Uma parte da esquerda brasileira tem sua agenda pautada por uma direita reacionária e ultraconservadora que por conseguinte possui raízes nas relações de poder aristocráticas escravistas e feudais.

                Entretanto, esse ultraconservadorismo não "ressurge das cinzas" por acaso. Ele é planejado, motivado por uma nova forma de imperialismo  e seu braço ideológico, ou seja, as concepções neoliberais.

                A vertente dominante do imperialismo atual, o grande capital financeiro, incentiva ao mesmo tempo o ressurgimento das abafadas vozes de uma velha guarda ultraconservadora e dos puritanos (militares da reserva, saudosos da ditadura, rentistas enfraquecidos e outros) com as novas lideranças políticas e econômicas surgidas num ambiente ideológico neoliberal (do empreendedor schumpeteriano e da meritocracia, como se o ambiente social e o Estado não fossem indutores do sucesso individual), do individualismo e tantas outras formas ideológicas difundidas pelas igrejas e pela mídia.

                Os agentes do imperialismo capitalista financiam um componente primordial nesse jogo de forças. As lideranças juvenis de classe média e média-alta conseguem arrebanhar uma multidão de jovens alienados (originados sobretudo de um sistema educacional precário e acrítico) e sem muita esperança no futuro.

                Essas lideranças jovens – enriquecidas, com sua atuação política dissuasiva e financiadas pelo imperialismo, por meio de ONGs, associações etc. – objetivam claramente desestabilizar governos e forças de esquerda, atuando sobremaneira nos movimentos estudantis secundaristas e universitários.

                Estes grupos possuem um único objetivo: pautar os caminhos da esquerda. Essa arapuca dá certo, redundando numa polarização dominada por discursos racistas, homofóbicos, machistas, preconceitos de toda ordem e, em certa medida, acaba em assassinatos políticos.

                Ao mesmo tempo incidem o discurso de eficiência e moralidade pública que objetiva o falso fim da corrupção. Falso na medida em que os maiores difusores dos discursos de ódio e moralidade pública estão envolvidos em grandes escândalos.
Essa é a armadilha montada para grande parte da esquerda brasileira. Ela tem como objetivo direcionar o campo de luta da esquerda e especialmente pautar seu campo de luta, afastando a mesma das questões macroeconômicas (um projeto nacional-desenvolvimentista) e de soberania nacional.

                Mas todas essas pautas, apesar de importantes e combatidas (devido a seus argumentos repugnantes levantados pelos grupos ultraconservadores), são uma cortina de fumaça. Uma distração que leva grande parte da esquerda para uma discussão ideológica no âmbito da superestrutura. "Se queres prever o futuro, estuda o passado", dizia Confúcio.

        Ao tratar da superestrutura, a esquerda brasileira distrai-se e abandona a essência das grandes questões nacionais, ou seja, aquelas no âmbito da infraestrutura e que interessam ao imperialismo.

                Quais são estas questões? Os elementos primordiais da nossa macroeconomia nacional, como as privatizações e concessões de serviços públicos à iniciativa privada, a ampliação do exército industrial de reserva, a diminuição dos salários, a flexibilização da legislação trabalhista, o aumento da jornada de trabalho, o fim de um sistema previdenciário público e a transferência para um regime privado repleto de riscos e falcatruas, a diminuição da assistência social, o aumento do desemprego, a baixa do PIB.

                Além destas, a geoeconomia mundial e a geopolítica global, como a formação dos BRICS, a liderança do Brasil na América Latina, a soberania sobre o pré-sal e os investimentos decorrentes dele em educação e saúde, ampliação do comércio e das relações internacionais do Brasil.

                E ainda o avanço imperialista, com seu interesse na expansão dos ganhos financeiros dos Estados Unidos em detrimento das suas perdas produtivas e de inovação e sua resistência a uma contra hegemonia na qual o Brasil estava em processo de aproximação, isto é, a China.

                Por fim, o neoliberalismo e as bases políticas para uma maior ampliação da financeirização da economia, com a manutenção do dólar como principal moeda de trocas internacionais e todos os elementos de coerção extra-econômicas possíveis para ampliar as bases comerciais globais de circulação do capital em prol do império e seus associados.

                Portanto, a prisão de Lula faz parte de toda essa orquestração. Personagens como juízes, militares, rentistas, grupos de mídia e outros são agentes internos associados a essa lógica imperialista. Historicamente cooptados, fazem o jogo do império e entregam a soberania nacional por algumas migalhas.
Muitos outros personagens não passam de “bobos da corte” em busca dos restos jogados aos cães pelo “rei”. Estão nessa categoria o pobre de direita e uma parcela significativa da classe média. Ludibriados, mas convenientemente na batalha das elites econômicas e políticas nacionais e internacionais.

                São mercenários empobrecidos ou típicas “buchas de canhão”, na frente da batalha, para receber os primeiros tiros. As “buchas de canhão” integram a nossa história colonial, imperial e republicana.

                A esperança é que parte desses grupos denominados aqui de “bobos da corte” começaram a acordar e percebem a sua utilidade funcional para um sistema falido e que, por conseguinte, também irá oprimi-los.

                A questão é quanto tempo demorará para acordarmos? Será que perceberemos a essência dos fatos em vez de sua mera aparência? Antes tarde do que nunca? E esse tardar virá com mudanças demoradas, de cima para baixo, realizadas pela burguesia, uma mera revolução passiva, ou enfrentaremos uma verdadeira revolução?
Para essa última as perspectivas históricas estão confusas e muito pouco latentes. 

domingo, 15 de abril de 2018

Uma enciclopédia para entender o golpe de 2016

Livro mostra como a mídia atuou para derrubar Dilma e apoiou a tomada do poder pelo ilegítimo Temer
por Eduardo Nunomura — publicado 15/04/2018 00h30, última modificação 13/04/2018 10h53.

Uma dezena de universidades públicas mobilizou-se para criar disciplinas sobre o golpe de 2016, seguindo a iniciativa do professor da Universidade de Brasília Luis Felipe Miguel. Na primeira aula, na segunda-feira 5, o cientista político explicou por que essa palavra é tão repelida justamente por aqueles que a puseram em circulação no Brasil.
“Não foi só uma mudança em quem ocupa a Presidência. É uma mudança profunda, que se pretende definitiva, imposta unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos de dentro do Estado, nas regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um golpe”, escreveu o professor.
A academia começa a cumprir o seu papel, e é preciso dar nome aos bois, ainda que estes tenham o infortúnio de ser chamados de Temer, Cunha, Aécio ou Geddel. A esta altura do campeonato, só mesmo golpistas não admitem que Michel Temer é um presidente ilegítimo e o mandato popular de Dilma Rousseff foi roubado por eles.
Porém, a jornalista Maria Inês Nassif alerta no prefácio da Enciclopédia do Golpe - O papel da mídia que, se as futuras gerações se dedicarem a estudar esse período da história brasileira por meio do noticiário da imprensa comercial, certamente considerarão que tudo transcorreu dentro da normalidade institucional.
“O que aconteceu é o que aconteceu: não existem duas versões para um Congresso que se reúne e depõe uma presidente legitimamente eleita e entrega o poder a um vice de passado nebuloso; não há duas interpretações para um Judiciário que condena inocentes inventando interpretações sobre textos legais que variam conforme o réu; não há duas visões sobre uma mídia que omite, esconde e manipula”, resume Maria Inês.
A obra de 251 páginas contém 28 verbetes escritos por profissionais e estudiosos da comunicação, cientistas políticos, filósofos e historiadores. Os capítulos tratam de temas variados, que vão desde uma radiografia do conluio entre jornalistas e o Judiciário, passando pela falta de democratização da mídia, o protagonismo político da TV Globo, a tomada das redes sociais por movimentos reacionários e a ainda influente agenda imposta pelos veículos tradicionais. O foco é a centralidade da mídia hegemônica, tida pelos organizadores da obra como a principal responsável pela narrativa dos acontecimentos. 
“Indispensável a contribuição da propaganda inutilmente disfarçada de jornalismo para demonizar Lula, alvo maior da manobra golpista, reconhecido como principal entrave ao projeto de um Brasil-satélite no quintal dos EUA, país em demolição atado a instituições medievais, insignificante no plano internacional, exportador ainda e sempre de commodities”, defende Mino Carta, diretor de redação de CartaCapital, na introdução da enciclopédia.
“De fato, uma mídia empresarial totalitária, com força e decisão para capturar e ditar o rumo dos acontecimentos parece ter sido a principal engrenagem motora da ruptura da normalidade democrática”, anota o filósofo Bajonas Teixeira de Brito Junior, da Universidade Federal do Espírito Santo.
Para ele, é possível traçar paralelos entre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que defendeu o golpe de 1964, com o que define como “pseudo ‘movimentos de protesto’”, como o MBL, Vem pra Rua e Revoltados Online, reeditando a estratégia golpista em 2015.
No conjunto, a enciclopédia presta-se a iluminar sombras de uma cobertura visivelmente negativa praticada pelos maiores e mais privilegiados veículos midiáticos. Ela é classista, por estar em defesa dos interesses empresariais das elites, e não surgiu com o impeach-ment. Mais de um autor defende que o golpe já vinha sendo fermentado desde que o PT assumiu o poder.
“A Globo, com seus obedientes mervais, já vinha trabalhando desde o ‘Mensalão’, em 2005, para construir a ideia de que o PT inventou a corrupção no Brasil”, afirma o jornalista Rodrigo Vianna.
Autores dos verbetes descrevem a onipresença da emissora global para a “construção e disseminação de propaganda antipetista e antiesquerda”, segundo Maria Inês. “O processo de impeachment foi um jogo de futebol. A Globo passava a bola para a Folha, que deixava a Veja perto do gol, que tocava para o Sergio Moro completar de cabeça”, explica o jornalista Miguel do Rosário.
Essa triangulação só foi possível por haver um sistema midiático altamente concentrado no Brasil e cujo antídoto, a democratização dos meios de comunicação, jamais chegou a representar uma ameaça real às empresas.
Ora a imprensa atacava ferozmente o governo federal por aventar colocar em pauta esse assunto, ora Lula e Dilma não só recuavam como continuavam a favorecer as grandes corporações destinando generosos recursos por meio da propaganda oficial. Entram nessa combinação as revistas semanais VejaÉpoca IstoÉ, como anota o professor Frederico de Mello Brandão Tavares, da Universidade Federal de Ouro Preto. “Em ‘tempos de golpe’, estas revistas (...) funcionam como gatilho para a pauta noticiosa. Vendem opinião como notícia.”
Outro verbete essencial é o caráter misógino do golpe. Para a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma, e a jornalista Júlia Martim, a mídia “estimulou em todas as oportunidades as críticas pautadas em questões comportamentais e não políticas”.
Esse conteúdo machista alimentou e fortaleceu um discurso de ódio, que acabou invadindo as redes sociais manipuladas por robôs, perfis anônimos e favorecendo a explosão das fake news, que também virou um verbete. “A imprensa brasileira faz parte da articulação de um golpe protagonizado por uma elite de homens brancos, declarados como heterossexuais e defensores de uma sociedade estruturada no patriarcado.”
Este é o segundo volume da Enci-clopédia do Golpe. O primeiro foi lançado em novembro e procurou explicar como cada um dos golpistas atuou em 2016. Escreveram verbetes, entre outros, os historiadores Luiz Alberto Moniz Bandeira e Fernando Horta, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (consultor editorial da CartaCapital) e o sociólogo Jessé Souza.

sábado, 14 de abril de 2018

Jair Bolsonaro é denunciado ao STF por racismo

por Redação — publicado 14/04/2018 11h12
Para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o deputado desrespeitou quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTS
O deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), pré candidato à Presidência, foi denunciado na sexta feira 13 ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo crime de racismo contra quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTS. A apresentação da denúncia foi feita pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
O caso remete a uma palestra realizada pelo deputado em outubro do ano passado, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro. Na ocasião, segundo a procuradora, Bolsonaro praticou, induziu e incitou discriminação e preconceito contra as comunidades.

A denúncia cita seu discurso de ódio para os índios, impondo-lhes a culpa pela não construção de três hidrelétricas em Roraima, além de críticas à demarcação de terras indígenas. Também considera frases desrespeitosas direcionadas às comunidades quilombolas como "essas comunidades não fazem nada", "nem pra procriador eles servem mais". O texto ainda diz que o deputado comparou os integrantes quilombolas a animais ao utilizar a palavra arroba para caracterizá-los.

Também foi citado um paralelo que Bolsonaro fez com sua família para discriminar as mulheres. A Procuradoria cita a frase: "eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher".

À época, a Justiça do Rio de Janeiro já havia condenado o deputado a pagar multa de R$ 50 mil  pelo episódio. Sua defesa alegou que Bolsonaro havia "notoriamente" utilizado "piadas e bom humor". Para Dodge, no entanto, a candidatura do deputado é ilícita, inaceitável e severamente reprovável.

Se a acusação for aceita e Bolsonaro condenado, ele poderá cumprir pena de reclusão de um a três anos - o crime de racismo é inafiançável. Além disso, Dodge também pede o pagamento mínimo de R$ 400 mil por danos morais coletivos.

A PGR também apresentou denúncia contra o filho de Jair Bolsonaro e igualmente deputado federal, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Ele é acusado de ameaçar a jornalista Patrícia de Oliveira Souza Lélis por um aplicativo de mensagens instantâneas.

O deputado Jair Bolsonaro já responde a uma ação penal no STF pelo crime de incitação ao estupro, que se relaciona ao episódio em que disse à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) que só não a estupraria porque "ela não merecia". Fora do STF, em ação cível, Bolsonaro foi condenado a pagar indenização de R$ 10 mil no caso. Ele chegou a recorrer, mas perdeu.

Ainda não está claro, no entanto, se as ações significam uma ameaça legal à candidatura do deputado de extrema direita. Além de depender da agenda discricionária do Supremo para avaliar a denúncia e fazer os julgamentos, passa pelo que está prescrito na Lei da Ficha Limpa, onde o crime de racismo ou incitação ao estupro não estão previstos.

Ainda assim, há quem cite o artigo 15º da Constituição como embasamento para um possível veto a seu projeto político: ter uma "condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos" cassa os direitos políticos do réu.

Trump ordena ataque dos EUA à Síria. O que vem pela frente?

O conflito teve uma nova escalada, mas ainda não se sabe qual a real estratégia de Washington para lidar com Assad e o Estado Islâmico
por José Antonio Lima — publicado 07/04/2017 10h21, última modificação 07/04/2017 10h36
Jim Watson / AFP
Donald Trump
Trump durante discurso na Flórida, de onde ordenou ataque. Sua posição diante de Assad mudou de forma repentina
A Marinha dos Estados Unidos lançou na noite de quinta-feira 6 um bombardeio contra a base de Shayrat, em Homs, uma das principais da força aérea de Bashar al-Assad, no primeiro ataque de Washington que teve como alvo a liderança do regime sírio. A ofensiva se deu em represália a um ataque químico realizado em Khan Sheikhun, província de Idlib, dominada por rebeldes, que a Casa Branca atribui a forças de Assad. Trata-se de um novo e importante agravamento na guerra civil Síria, que em seis anos deixou centenas de milhares de mortos e 5 milhões de refugiados.
Como foi realizado o ataque?
O bombardeio foi autorizado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, e partiu de dois destróieres da Marinha norte-americana, o USS Porter e o USS Ross, estacionados no Mar Mediterrâneo. Segundo o Pentágono, o Departamento de Defesa dos EUA, 59 mísseis Tomahawk foram lançados contra a base de Shayrat. A base teria sido a origem dos ataques contra Khan Sheikhun. "O ataque foi uma resposta proporcional ao ato hediondo de Assad", disse o Pentágono em um comunicado. "O uso de armas químicas contra inocentes não será tolerado", afirmou.
Qual foi o resultado do bombardeio?
O Pentágono disse que atingiu aviões, abrigos de aeronaves, depósitos logísticos e de combustível, bunkers de munição, defesa aérea e radares. A agência de notícias oficial do governo da Síria não confirmou danos militares, mas afirmou que a agressão norte-americana provocou a morte de nove civis, incluindo quatro crianças, deixou sete feridos e causou danos importantes em casas das localidades de Al-Shayrat, Al-Hamrat e Al-Manzul, próximas à base.
Ataque à Síria
Mísseis Tomahawk lançados pelos EUA no Mediterrâneo (Foto: Ford Williams / Marinha dos EUA / AFP)
O que Trump alegou para ordenar o ataque?
No discurso que vez logo após o lançamento do bombardeio, o presidente dos Estados Unidos tentou retratar o ato como uma resposta direta ao ataque químico atribuído a Assad. Trump iniciou sua fala afirmando que "Assad sufocou a vida de homens, mulheres e crianças sem esperança", que sofreram "uma morte lenta e brutal para muitos".
Ainda segundo Trump, a retaliação representa um 'interesse vital da segurança nacional dos EUA", pois ajuda a "prevenir e impedir o uso de armas químicas mortais".
Fatores da política interna também podem ter pesado para o ataque. Trump se encontra acossado por uma série de críticas a sua administração, como a desorganização no que tange a política externa e a proximidade com a Rússia, que vem sendo investigada pelo FBI, a polícia federal dos EUA.
A demonstração de força pode, para o público norte-americano, mostrar assertividade e independência de Moscou, que apoia Assad firmemente. De quebra, Trump deve experimentar uma alta em sua popularidade, como costuma ocorrer no início de ofensivas militares norte-americanas.
O ataque significa que os EUA vão invadir a Síria?
Não. O discurso de Trump, o alvo localizado do ataque e sua pequena monta indicam que a intenção da Casa Branca é fazer deste bombardeio uma ação pontual, que sirva de recado não apenas para Bashar al-Assad, mas para outros países que possuem armas químicas ou nucleares, como a Coreia do Norte, a respeito da intenção de Washington de impedir o uso desses armamentos.
Então qual é a estratégia dos EUA para a Sìria?
Trata-se de uma incógnita. Na quarta-feira 5, o general Mark Milley, chefe do Estado-maior dos EUA, esteve no Comitê das Forças Armadas da Câmara e foi questionado sobre qual a estratégia de Washington para a Síria. Ele não soube responder e sugeriu ao deputado que o questionou que perguntasse a Trump e seu secretário de Defesa, James Mattis, pois os militares trabalham sob uma cadeia de comando.
Chama atenção, entretanto, a abrupta mudança de discurso dos EUA em relação a Assad. Exatamente uma semana antes do ataque contra a Síria, os principais nomes da diplomacia dos EUA, o secretário de Estado, Rex Tillerson, e a embaixadora na ONU, Nikki Haley, indicaram que aceitavam a permanência de Assad no futuro da Síria.
Após o ataque químico, as posições mudaram. Em seu discurso, Trump falou abertamente sobre promover uma mudança de regime na Síria. "Hoje à noite clamo a todas as nações civilizadas a buscar acabar com o massacre e o derramamento de sangue na Síria e também para acabar com o terrorismo de todos os tipos e de todos os tipos."
Para a comunidade internacional, fica claro que os EUA com Trump são mais assertivos do que eram com Barack Obama, mas espanta o fato de sua política externa ser modificada de maneira tão repentina.
Mas é possível combater Assad e o Estado Islâmico ao mesmo tempo?
A guerra civil da Síria tem todos os ingredientes para se prolongar por muitos anos. A sociedade se tornou totalmente incoesa, há diversos grupos beligerantes, nenhum deles com força militar ou política para vencer e muita interferência estrangeira.
Hoje, só seria possível tentar colocar fim ao conflito com uma invasão de larga escala, com dezenas ou centenas de milhares de soldados, nos moldes do que os Estados Unidos realizaram no Afeganistão em 2001 e no Iraque em 2003. Esta hipótese, entretanto, não deve ser levada a cabo, pois ela traz em seu bojo um enorme risco de provocar uma épica guerra regional envolvendo o Irã, principal apoiador de Assad, e a Arábia Saudita, que atua para tirá-lo do poder, além de outros países.
Neste cenário, surgem contradições. Qualquer ataque contra as forças de Assad é, na prática, um ato em favor dos rebeldes, mas também do Estado Islâmico. Não retaliar as atrocidades de Assad, em contrapartida, significa apoiar um ditador sanguinário. 
Síria
Com imagens das vítimas do ataque químico, moradores de Khan Sheikhun protestam contra Assad
E qual foi a reação da Rússia?
A Rússia foi avisada do ataque e o alvo foi confirmado pelo Pentágono como não tendo militares russos. Ainda assim, Moscou mostrou imensa irritação com a ação militar de Trump, ao chamar o ataque de "agressão contra um Estado soberano". 
O presidente russo, Vladimir Putin, disse considerar o bombardeio uma "agressão contra um Estado soberano" baseado "em pretextos inventados". "Esta ação de Washington causa um prejuízo considerável às relações entre Estados Unidos e Rússia, que já se encontram em um estado lamentável", afirmou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
É importante ter em conta, entretanto, que não é do interesse russo escalar o conflito com os Estados Unidos na Síria. A Rússia continua sendo o ator externo de maior força no país, capaz de alguma forma de ditar os rumos do conflito. Assim como os EUA, Moscou não pretende e não deseja aumentar seu envolvimento na Síria, invadindo e ocupando o país. 
Qual deve ser o desfecho do ataque então?
O cenário mais provável é que o ataque dos Estados Unidos à força aérea de Assad seja mesmo um episódio pontual. A tendência é que os ímpetos aflorados desde a noite de quinta-feira 6 sejam acalmados e EUA e Rússia concordem, ao menos tacitamente, em manter suas posições: o primeiro como "polícia moral" do mundo, que combate o uso de armas químicas, e a segunda como uma indignada defensora da soberania dos Estados, ainda que estes sejam comandados por figuras como Assad.
O interesse primário de Washington e Moscou deve continuar sendo o Estado Islâmico, que nos próximos meses sofrerá importantes derrotas militares tanto no Iraque quanto na Síria. Este, sim, será um momento delicado, um divisor de águas. Quando o ISIS, como também é chamado o grupo extremista, perder seus territórios, uma nova disputa se abrirá, talvez ainda mais violenta, pois colocará frente a frente os blocos liderados pelo Irã e pela Arábia Saudita.
O Iraque pós-Estado Islâmico será extremamente complicado, mas a Síria pós-Estado Islâmico representará um desafio monumental à comunidade internacional, por conta dos inúmeros interesses locais, regionais e globais circulando por ali. Como se trata do Oriente Médio, a tendência, sempre, é tudo piorar.

Quais interesses cada país tem na guerra da Síria?

por Deutsche Welle — publicado 26/02/2018 00h05, última modificação 23/02/2018 09h47
Conflito não é conduzido apenas por Assad e oposicionistas: outros países estão envolvidos por motivos militares, religiosos e econômicos
Amer Almohibany/AFP
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No conflito da Síria, interesses internacionais são tão relevantes quanto as motivações internas
Por Matthias von Hein, Martin Muno, Jens Thurau, Rahel Klei e Mikhail Bushuev
De uma guerra civil que opunha rebeldes e jihadistas ao regime do presidente Bashar al-Assad, o já longo conflito na Síria evoluiu para um enfrentamento internacional no qual potências como Estados Unidos, Rússia, Turquia, Irã, Arábia Saudita e também Israel estão cada vez mais envolvidos. Confira quais são e que interesses perseguem os principais atores internacionais do conflito.
Irã: principal apoiador de Assad
À primeira vista, o regime secular da Síria e a teocracia iraniana têm pouco em comum. Mas foi justamente a ajuda de Teerã que evitou a queda de Assad, ao menos até a intervenção direta da Rússia, no final de 2015. Até lá, o Irã era o principal aliado militar de Assad.
Os iranianos forneciam dinheiro, armas, informações de inteligência e enviavam conselheiros militares, como também tropas para a Síria – formadas por membros da Guarda Revolucionária, por milícias xiitas ou também pelo grupo libanês Hisbolá, que é fortemente apoiado pelo Irã.
O viés religioso da guerra civil, por meio dos jihadistas sunitas, oferece ao Irã a possibilidade de se apresentar como a potência protetora dos xiitas, em oposição à potência regional sunita, a Arábia Saudita.
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Além disso, a aliança bélica do Irã com Assad se baseia em três objetivos comuns: o desejo de conter a influência americana no Oriente Médio, o enfraquecimento de Israel e, no passado, impedir a ânsia por poder do Iraque comandado por Saddam Hussein.
Atualmente, Teerã e Damasco compartilham também a oposição à Arábia Saudita e aos países sunitas do Golfo Pérsico. Em termos de estratégia regional, a Síria é importante para o Irã como uma ponte para o Líbano, onde o Hisbolá tem sua área central de atuação.
Rússia: a salvação de Assad
Quando Assad se encontrava num beco sem saída, a Rússia o ajudou: em 2015, Moscou deu início ao seu apoio militar ao regime sírio. O objetivo oficial da Rússia: a luta contra o terrorismo. Na verdade, os ataques se dirigiram não somente contra o "Estado Islâmico" (EI) e outros grupos jihadistas, mas também contra muitos outros adversários de Assad.
Manter Assad no poder nunca foi o único objetivo de Moscou: depois do isolamento da Rússia devido à crise da Ucrânia, o presidente Vladimir Putin quis reposicionar seu país no cenário internacional, principalmente como potência atuante no Oriente Médio – e foi bem-sucedido. O presidente sírio também lucrou com a intervenção russa: ele reconquistou grande parte da Síria.
Os maiores sucessos militares dos russos aconteceram em Aleppo e Palmira. Nesse contexto, no entanto, o Kremlin ignorou as diversas acusações de crimes de guerra contra civis.
Além disso, a Rússia e o Irã compartilham o objetivo de diminuir a influência dos Estados Unidos no Oriente Médio.
Arábia Saudita: guerra de procuração contra o Irã
Desde a guerra do Iraque, em 2003, a Arábia Saudita, sunita, vem se preocupando com a crescente influência do Irã, xiita, na região, com quem compete pelo papel de principal potência regional. A proximidade entre Damasco e Teerã também é vista com desconfiança por Riad.
A Arábia Saudita vem apoiando fortemente a oposição síria desde o início da Primavera Árabe, em 2011. O objetivo: derrubar Assad e instalar um regime mais amigável aos sauditas. Para tal, grupos jihadistas também foram generosamente abastecidos com dinheiro e armas. Tanto para a Arábia Saudita quanto para o Irã, a Síria se tornou um palco sangrento para a expressão dessa rivalidade.
Turquia: antes amiga, hoje inimiga
A Turquia em geral e o seu presidente, Recep Tayyip Erdogan, em particular mantiveram excelentes relações com o regime Assad até meados da década de 2000 – incluindo fotos de férias conjuntas na costa mediterrânea turca.
Com a eclosão da guerra civil síria, o oposto se tornou verdade: a Turquia passou a apostar na queda de Assad, apoiando a oposição síria. Por território turco passam combatentes e armas – destinados muitas vezes a grupos jihadistas, incluindo o "Estado Islâmico".
Atualmente, Ancara aparenta ter sobretudo um objetivo: impedir o estabelecimento de áreas curdas autônomas ou até mesmo independentes ao longo da fronteira turca – mesmo que, para tal, entre em conflito com os Estados Unidos, aliados dos turcos na Otan e principais apoiadores da milícia curda YPG.
Além disso, Erdogan quer desempenhar um papel importante na modelação da Síria pós-guerra. As expedições militares através da fronteira também servem para reivindicar esse papel. Em alusão ao Império Otomano, essa exibição de poder também deve ajudar Ancara no seu objetivo de se tornar uma potência influente no Oriente Médio.
Israel: o inimigo está em Teerã
A maior preocupação de Israel na guerra civil síria é a presença contínua da Guarda Revolucionária iraniana e de combatentes leais a Teerã na Síria. Acima de tudo, Israel teme que a milícia libanesa Hisbolá se estabeleça nas Colinas de Golã, na fronteira sírio-israelense, e bombardeie o país a partir daí.
Por esta razão, desde o início do conflito sírio em 2011, a Força Aérea israelense lançou cerca de uma centena de ataques a comboios de armas para o Hisbolá, fábricas de armamentos e posições iranianas.
EUA: envolvimento sem planejamento
Foram as lições do fracasso da intervenção dos EUA no Iraque e na Líbia que levaram o ex-presidente Barack Obama à sua hesitante política para a Síria. Quando, em 2012, Assad chegou perto de uma derrota militar, Obama se recusou a um maior envolvimento, ainda que condenasse fortemente os ataques do governante sírio contra o próprio povo. Em vez disso, foi a Rússia que interveio na guerra civil – ao lado de Assad.
A política do presidente Donald Trump é igualmente hesitante: seus objetivos são a destruição do grupo terrorista "Estado Islâmico" e a contenção da influência regional do Irã. É por isso que o envolvimento dos EUA se limita à presença de forças especiais e ataques aéreos individuais. Assim, a participação americana na Síria não desempenha um papel realmente decisivo.

A recente ofensiva turca contra os curdos em Afrin criou um dilema para os Estados Unidos, já que a Turquia é um importante parceiro no âmbito da Otan, mas Washington, ao mesmo tempo, precisa dos combatentes curdos como aliados poderosos contra o "Estado Islâmico".
Alemanha: ajuda à autoajuda
No passado, a Alemanha sublinhou repetidamente que uma solução pacífica para a guerra da Síria só seria possível sem Assad. Recentemente, o porta-voz do governo em Berlim, Steffen Seibert, instou o Irã e a Rússia, aliados da Síria, a exercer influência sobre o governante sírio. "Sem o apoio desses dois aliados, o regime Assad não estaria militarmente onde está", disse.
Militarmente, a Alemanha não está diretamente envolvida na guerra na Síria e é antes um ator de pouco peso. No entanto, aeronaves alemãs apoiam o reconhecimento aéreo de posições do "Estado Islâmico". Inicialmente, esses aviões partiam da Turquia, mas agora, depois da retirada das Forças Armadas alemãs (Bundeswehr) de Incirlik, eles passaram a voar da Jordânia.
Além disso, a Bundeswehr ajuda os combatentes curdos que lutam contra o "Estado Islâmico" no norte do Iraque, principalmente através de treinamento e fornecimento de armas. A Alemanha também desempenhou um papel central na destruição temporária de armas químicas sírias.
Mais recentemente, no entanto, os tanques de guerra Leopard fornecidos há muitos anos à Turquia estiveram no centro de debates acalorados na Alemanha, depois que Erdogan os usou em seus ataques aos curdos na Síria.
França: Macron procura a solução política
Dos países ocidentais, foi a França que assumiu um papel particularmente ativo na guerra da Síria. Inicialmente, a França forneceu equipamentos médicos aos rebeldes sírios, mais tarde também armas. No final de setembro de 2015, deu início a ataques aéreos contra o "Estado Islâmico", expandindo-os após os atentados terroristas de Paris, em novembro de 2015.
Segundo declarações próprias, as prioridades da França na Síria se concentram na melhora da ajuda humanitária, na luta contra o terrorismo e na retomada das negociações de paz. Principalmente em relação ao último ponto, o presidente Emmanuel Macron se esforçou de forma especial.
A França apoia a oposição moderada e acredita numa solução política para a Síria. Além disso, Macron disse, no ano passado, que Paris não considera mais a saída de Assad uma condição para as negociações de paz.
Há pouco mais de uma semana, o presidente francês ameaçou executar ataques aéreos na Síria se houvesse evidências do uso de armas químicas contra civis. Ele já havia advertido, no ano passado, contra uma ultrapassagem dessa "linha vermelha".

Há tempos a guerra na Síria não é mais sobre Assad

Decisão de Trump de bombardear a Síria, com alertas a Rússia e Irã, mostra o emaranhado de interesses do conflito
por Deutsche Welle — publicado 14/04/2018 08h20
AFP
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Tanque do regime de Assad em Duma, onde ocorreu o ataque químico

A decisão do presidente americano, Donald Trump, de bombardear a Síria levou a temores de que a guerra, que já se estende por mais de sete anos, entre num novo patamar.
Os mísseis americanos tiveram como alvo o regime de Bashar al-Assad, que seria o responsável pelo ataque químico em Duma. Mas a guerra civil síria há muito tempo já não se trata mais apenas sobre o ditador, como deixou claro o próprio tuite de Trump.
Ao Irã e à Rússia, eu pergunto: que tipo de países querem estar associados ao assassinato em massa de homens, mulheres e crianças inocentes?”, disse Trump neste sábado.
O Pentágono tratou de aplacar os temores de uma ofensiva mais ampla – não há outros bombardeios programados – mas a decisão de Trump expõe dois desenvolvimentos importantes no conflito.
Um é que atores importantes estão sendo arrastados de forma cada vez mais intensa para o conflito, como mostra a ofensiva turca sobre Afrin e o bombardeio sobre a base aérea síria de Taifour, que seria responsabilidade de Israel.

Ao mesmo tempo, cresce a tensão no Oriente Médio. A guerra deixou um vácuo de poder na região, que as potências – não apenas regionais – tentam preencher de forma cada vez mais decisiva.
Nesta guerra, há muito tempo o mais importante deixou de ser os interesses da oposição ou Assad. Em jogo está algo de maior dimensão. Enquanto Rússia e Irã, aliados do regime sírio, tentam ampliar sua influência na região, seus adversários – sobretudo EUA e, cada vez mais, Israel – tentam evitar isso.
"A mais alta prioridade da política americana consiste em apoiar Israel", afirma Günter Meyer, diretor do centro de estudos do mundo árabe da Universidade de Mainz. E isso, lembra o especialista, Trump fez questão de destacar continuamente. "Por isso a luta contra o Irã tem prioridade alta – funciona como ameaça a Israel."
O mesmo vale para o movimento radical libanês Hisbolá. Segundo Meyer, o objetivo é minar o chamado "eixo xiita", que começa no Irã e passa por Iraque, Síria e Líbano até a fronteira de Israel. Por isso, continua o especialista, os americanos aumentaram significativamente sua presença no leste sírio.
"Já se fala atualmente numa 'meia-lua americana', que passa por todo o nordeste sírio e se estende até a Jordânia", diz Meyer. A meta: criar um arco de proteção a Israel.
Irã, curdos e Hisbolá
O jornal em árabe Al-Araby Al-Jadeed, publicado em Londres, coloca o conflito num contexto maior: a Síria virou cenário de numa guerra por procuração entre EUA e Rússia. Outros palcos para esse conflito seriam a Ucrânia, no sentido militar, e a Líbia, no sentido diplomático.
"As relações russo-americanas entraram numa fase delicada", diz o jornal. "Se Rússia e EUA se envolverem militarmente (num conflito) no Oriente Médio, não apenas a guerra na Síria se intensificaria: poderia haver consequências para toda a região."
Os EUA há tempos veem a Síria de Assad de forma crítica. Quando os americanos invadiram o Iraque, em 2003, Damasco permitiu que jihadistas sírios e estrangeiros cruzassem sem problemas a fronteira.
Ali, eles ajudaram a criar uma resistência às tropas americanas. A mensagem de Damasco para Washington era clara: nem pensem em invadir a Síria. Naquela altura, já estava claro que o regime de Assad estava perdendo simpatia em Washington.
Segundo Meyer, na crise atual, trata-se sobretudo de minar a Síria, de modo que o país não seja mais um adversário forte. "As partes desintegradas do país se deixam jogar umas contras as outras", comenta o analista político.
O cenário se complica também pelo fato de o Hisbolá, apoiado pelo Irã, se aproximar cada vez mais da fronteira com Israel através das Colinas do Golã. E o regime de Assad, aliada de ambos, costuma pôr a Síria à frente da resistência a Israel.
Um contraponto a essa política é levado pelos curdos no norte da Síria. Mas, no momento, eles estão tendo que lidar com uma ofensiva turca na região de Afrin. Os curdos querem uma região autônoma para si, o que vai ao encontro dos interesses de israelenses. "Israel já declarou que apoia um Estado independente curdo", diz Meyer. "Isso mostra também do que se trata essa guerra.
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Proposta de reforma pode tirar jovens da escola por dois dias na semana por Ana Luiza Basilio — publicado 28/03/2018 00h30, última modificação 28/03/2018 09h33 Governo federal discute oferecer 40% do currículo na modalidade a distância, o que afastaria adolescentes das salas de aula

Rivaldo Gomes/Folhapress
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Reforma deve precarizar formação geral de estudantes e orientá-los a a carreiras de baixa complexidade no mercado de serviços

A possibilidade de o ensino médio ser oferecido a distância voltou a preocupar os movimentos por uma educação pública de qualidade. Na semana passada veio à tona a intenção do governo de permitir que até 40% da carga horária da etapa seja ministrada na modalidade ensino a distância. Isso faria com que os estudantes deixassem de frequentar as escolas por ao menos dois dias na semana.
A flexibilização estaria alicerçada em uma resolução que atualiza as Diretrizes Nacionais Curriculares do Ensino Médio, no contexto de uma reforma mais ampla, e prevê a regulamentação da carga horária. A proposta foi apresentada ao Conselho Nacional de Educação no último dia 6 pelo relator Rafael Lucchesi, presidente do Senai, e por Eduardo Deschamps, presidente do conselho. O texto ainda prevê que a Educação de Jovens e Adultos seja ofertada 100% a distância.
Quando o documento se tornou público, o Ministério da Educação negou a existência do projeto. O ministro Mendonça Filho alegou que a informação é “absolutamente inverídica” e que se trata de um debate muito pontual do conselho, órgão independente e autônomo. Mendonça Filho, que deve deixar a pasta em abril para concorrer nas eleições, garantiu ainda que a proposta será vetada caso chegue ao MEC.

A regulamentação encontra, porém, respaldo em um dispositivo legal. A Lei nº 13.415, sancionada em fevereiro de 2017 e que institui a reforma do ensino médio, previa a possibilidade de as escolas firmarem convênios com instituições de ensino a distância para cumprir as exigências curriculares.
Por essas razões, as justificativas do governo não convencem Fernando Cássio, professor de Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC. “O conselho virou um cartório do MEC, que o montou à sua imagem e semelhança, eliminando as fontes de dissenso e distorcendo a correlação de forças em favor de suas agendas. Então não adianta passar a fatura.”

O governo, afirma Cássio, cederia ao lobby de integrantes do conselho que representam a educação privada. “É de grande interesse do setor que a regulamentação exista, pois ela permitiria uma multiplicação de escolas online a distância, de baixíssimo custo, e o início de uma operação de entrega de vouchers pelo governo para custear os estudantes nessas instituições. É um primeiro passo para a privatização da oferta.”

O principal temor é o da precarização da formação dos estudantes, que, além de ter o tempo escolar reduzido, seriam submetidos a uma educação menos preocupada com uma perspectiva crítica. No ano passado, 7,9 milhões de estudantes estavam matriculados no ensino médio, segundo o Laboratório de Dados Educacionais-UFPR, elaborados a partir de microdados do Censo Escolar-Inep 2017.

Para Carlos Artexes, ex-integrante do Ministério da Educação, parte dessa preocupação baseia-se na própria reforma do ensino médio. “Embora ela parta do pressuposto da ampliação progressiva da carga horária na etapa, provoca o reducionismo curricular.”

A reforma estabelece um teto para o cumprimento dos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular no currículo do ensino médio de 1,8 mil horas, o que equivale a 60% do tempo total da etapa. Os outros 40% ficariam reservados à parte diversificada, os itinerários formativos que compreendem cinco áreas do conhecimento e precisam ser oferecidos de acordo com a possibilidade dos sistemas de ensino. A Base, em processo de homologação, deve ser remetida ao Conselho Nacional de Educação até o fim do mês.

“É a primeira vez que vejo uma regulação máxima para a formação geral dos estudantes. Hoje contamos com uma carga mínima de 800 horas por ano para a etapa, o que permite que as escolas façam mais de acordo com seu planejamento. Agora, estabelecemos limite para os conteúdos da Base”, pondera Artexes.
Por conta desse modelo, diz o especialista, não há garantia de que os sistemas educacionais consigam cumprir com a parte diversificada. “Em um contexto de crise econômica, a oferta de todos os itinerários formativos certamente não vai acontecer, os alunos não terão a possibilidade da escolha como tem sido anunciado, ficarão restritos às possibilidades de oferta das escolas.”

A dinâmica tende a ampliar as já profundas desigualdades educacionais, pois as escolas em condições mais precárias, localizadas em áreas pobres, terão menos chances de desenvolver trabalhos formativos do que aquelas localizadas em regiões com maior poder econômico.

Na visão dos especialistas, a política de educação em tempo integral, uma das principais âncoras da reforma do ensino médio, não deve contrariar a lógica. “O custo de uma escola de tempo integral é elevado, os estados não terão condição de mantê-las. E, mesmo que tenhamos 500 unidades no País, será pouco relevante diante das 20 mil unidades que atendem essa faixa.” A política, alerta Cássio, tenderia a criar ilhas de excelência e provocar distorções da qualidade do ensino.

Outro risco é de os estudantes serem punidos por uma formação com foco na profissionalização que os condicione a carreiras de baixa complexidade no mercado de serviços. “As reformas educacionais comandadas pelas elites têm um único fim, manter a estratificação das desigualdades. Os grupos que apoiam as reformas educacionais no País são os mesmos que bancam as reformas das relações de trabalho, da Previdência, e não encararam as mudanças de origem política e tributária”, lembra Cássio.