quinta-feira, 4 de maio de 2023

O Renascimento Cultural

 

O RENASCIMENTO CULTURAL

As transformações socioeconômicas iniciadas na Baixa Idade Média e que culminaram com a Revolução Comercial na Idade Moderna afetaram todos os setores da sociedade, ocasionando inclusive mudanças culturais. Intimamente ligadas à expansão comercial, à reforma religiosa e ao absolutismo político, as transformações culturais dos séculos XIV a XVI — movimento denominado Renascimento cultural estiveram articuladas com o capitalismo comercial.

Primeiro grande movimento cultural burguês dos tempos modernos, o Renascimento enfatizava uma cultura laica (não-eclesiástica), racional e científica, sobretudo não-feudal. Entretanto, embora tentasse sepultar os valores da Igreja católica, apresentou-se como um entrelaçamento dos novos e antigos valores, refletindo o caráter de transição do período. Buscando subsídios na cultura greco-romana, o Renascimento foi a eclosão de manifestações artísticas, filosóficas e científicas do novo mundo urbano e burguês.

O Renascimento não foi, como o termo pode evocar a princípio, uma simples renovação da cultura clássica e muito menos um renascer cultural, como se antes não houvesse cultura. Apenas inspirou-se na Antiguidade Clássica, sobretudo no antropocentrismo, a fim de resgatar valores que interessavam ao novo mundo urbano-comercial. Própria das mudanças em curso e da negação do período anterior foi a denominação, dada então à Idade Média, de “Idade das Trevas”.

Descartando a imensa produção cultural do período anterior, o Renascimento caracterizou-se por ser essencialmente um movimento anticlerical e antiescolástico, pois a cultura leiga e humanista opunha-se à cultura eminentemente religiosa e teocêntrica do mundo medieval.

No conjunto da produção renascentista, começaram a sobressair valores modernos, burgueses, como o otimismo, o individualismo, o naturalismo, o hedonismo e o neoplatonismo. Mas o elemento central do Renascimento foi o humanismo, isto é, o homem como centro do universo (antropocentrismo), a valorização da vida terrena e da natureza, o humano ocupando o lugar cultural até então dominado pelo divino e extraterreno.

Com o humanismo abandonava-se o uso de conhecimentos clássicos tão-somente para provar dogmas e verdades religiosas, descartando-se a erudição medieval confinada nas bibliotecas ou na clausura dos mosteiros. Impulsionava-se a paixão pelos clássicos greco-romanos numa busca de sabedorias e belezas "esquecidas" pela Idade Média.

O homem renascentista, artista, cientista, literato, confunde-se com o próprio Deus pela sua genialidade e criatividade, por emergir da profundeza escura da sujeição escolástica para se tornar verdadeiramente humano que, como diz Roland Mousnier, "pode assemelhar-se a Deus primeiramente, depois identificar-se a ele, se Deus o quiser, pela criação. O homem é, como Deus, um artista universal".

Fatores geradores do Renascimento

As transformações econômicas do final da Idade Média, associadas ao processo de urbanização e ascensão da burguesia, tornaram as concepções artístico-literárias feudais inadequadas. Novas exigências afloraram, refletidas no desenvolvimento comercial e na nova sociedade urbana emergente. As primeiras manifestações renascentistas apareceram e triunfaram onde essas transformações já predominavam — na Itália.

Reaberto o mar Mediterrâneo, com as Cruzadas, as cidades italianas de Florença, Veneza, Roma e Milão transformaram-se em grandes centros de desenvolvimento capitalista, motivo pelo qual apresentavam as condições necessárias para a germinação e proliferação do Renascimento.

Além disso, surgiram na Itália os mecenas, ricos patrocinadores das artes e das ciências, que objetivavam não só a promoção pessoal, mas também proveitos culturais e econômicos. Destacaram-se como protetores das artes os Médicis, em Florença, e os Sforza, em Milão.

Os italianos contavam ainda com uma viva presença da cultura clássica, graças aos seus muitos monumentos e ruínas, o que contribuía para o revigoramento de valores pré-feudais.

Foi também a Itália o principal polo de atração dos sábios bizantinos, pensadores formados pela cultura clássica grega, que para lá se dirigiam fugindo da decadência do Império Romano do Oriente e das crescentes pressões dos turcos otomanos.

Completando a imensa gama de componentes que detonaram o início do Renascimento na Itália, havia ainda as influências dos árabes, povo que obtivera, ao longo dos séculos, enorme repositório de valores da Antiguidade Clássica e que mantinha contatos comerciais com os portos italianos.

Fases do Renascimento

Houve precursores do Renascimento, como Dante Alighieri (1265-1321), natural de Florença, que escreveu a Divina comédia em dialeto toscano. Entretanto, apesar de sua obra criticar o comportamento eclesiástico, Dante ainda apresentava fortes influências medievais. O Renascimento italiano se impôs efetivamente a partir do século XIV, estendendo-se até o século XVI. Chamamos de Trecento (os anos trezentos) a fase do século XIV, Quattrocento (os anos quatrocentos) a do século XV e Cinquecento (os anos quinhentos) o período mais criativo, que foi de 1 500 a 1550.

O Trecento - século XIV

Nas artes plásticas, a principal figura desse período foi Giotto (1266-1337), que rompeu com a tradicional pintura medieval e seu imobilismo, caracterizado por uma hierarquia rígida que determinava a importância dos personagens pintados (Cristo sempre estava acima dos santos, era maior que os anjos e estes apareciam acima dos santos). Giotto fez do humano e da vida o foco de suas pinturas, dando às suas figuras um aspecto humano com traços de individualidade, destacadamente em São Francisco pregando aos pássaros e Lamento ante Cristo morto.

Nas letras, o período caracterizou-se pelo uso da língua italiana (dialeto toscano), embora ainda houvesse fortes influências medievais. Dois autores se destacaram: Petrarca (1304-1374) e Giovanni Boccaccio (1313-1375).

Petrarca, considerado o ' 'pai do humanismo e da literatura italiana" imprimiu em sua obra épica, De África, marcantes traços dos clássicos greco-latinos. Apesar disso, em algumas obras, como nos poemas Odes a Laura, evidenciava-se ainda uma forte religiosidade cristã medieval, aliada ao trovadoresco das canções dos cavaleiros do século XIII. Boccaccio é o autor de Fiammetta, Filistrato e Decameron, conjunto de contos que ressaltam o egoísmo, o erotismo e o anticlericalismo, desprezando os ideais ascéticos do período medieval.

O Quattrocento - século XV

O entusiasmo pela cultura greco-romana fez renascer, na literatura desse período, as línguas clássicas e o paganismo. Em Florença, foi criada a Escola Filosófica Neoplatônica, com o patrocínio do mecenas Lourenço de Médici. Na pintura, tiveram grande importância os artistas de Florença, que introduziram a técnica a óleo. Dentre eles, podemos destacar Masaccio (1401-1429), que, embora tenha tido uma breve passagem pelo cenário artístico de Florença, influenciou a pintura ao romper com resquícios da arte medieval, chamados de "gótico tardio"

Deu aos seus trabalhos realismo, volume e peso, tomando da arquitetura e da escultura alguns de seus princípios básicos. Conseguiu transportar para suas telas a geometria em perspectiva do arquiteto Brunelleschi e do escultor Donatello. Suas pinturas mais famosas são A expulsão de Adão e Eva do paraíso, Tributo, Distribuição de esmolas por São Pedro e Histórias de Ananias.

Sandro Botticelli (1445-1510) foi outro destaque da pintura renascentista. Suas obras apresentam figuras leves, tênues, quase imateriais. Traduz uma convicção pessoal de que a arte é antes de tudo uma expressão espiritual, religiosa, simbólica. Seus personagens buscam a beleza neoplatônica e alcançam, em Nascimento de Vênus, a união entre o paganismo clássico e o cristianismo. A nudez brilhante da deusa do amor não sugere o amor físico, mas a inocência, como que nascendo purificada das águas do Batismo. Além de Nascimento de Vênus, suas telas mais famosas são Alegoria da primavera e Fallade e o centauro.

Leonardo da Vinci (1452-1519), um dos humanistas mais completos do Renascimento, é considerado figura de transição, pois viveu a metade do Quattrocento e o início do Cinquecento. No primeiro período, quando Florença era o polo cultural da Itália, a arte ainda imitava os modelos clássicos e predominava o uso das línguas clássicas. No Cinquecento, Roma transformou-se no eixo renascentista, ao mesmo tempo que a língua italiana era usada fluentemente, assim como o latim e o grego. Predominavam nesse período a originalidade, a criação tanto na forma como no conteúdo, o que resultava numa arte própria – fusão do clássico com o moderno.

Ao longo de sua vida, a obra de Leonardo da Vinci incorporou as tendências de cada um desses períodos e ele foi de pintor e escultor a urbanista e engenheiro; de músico e filósofo a físico e botânico. Esboçou inventos que só séculos mais tarde se concretizariam, como, por exemplo, o paraquedas, o escafandro, o canhão, o helicóptero etc. Suas telas mais famosas são Gioconda (Monalisa), Santa Ceia e Virgens das rochas.

O Cinquecento – Século XVI

Nesse período, em que o uso da língua italiana foi sistematizado, destacaram-se alguns escritores como: Francesco Guicciardini, com História da Itália; Torquato Tasso, autor de Jerusalém Libertada; e Ariosto, autor de Orlando, o furioso. Entretanto, foi Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) o iniciador do moderno pensamento político, o maior expoente literário do período. Em O príncipe, defende um Estado forte, independente da Igreja, um governo absolutista em favor do qual todos os meios são justificáveis, estando a “razão de Estado” acima de qualquer outro ideal. Escreveu também a História de Florença, Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e a peça Mandrágora, considerada a mais perfeita obra teatral escrita em língua italiana.

Nas artes do Cinquecento, destacou-se Rafael Sanzio (1483-1520), um dos mais populares artistas da Renascença, que deixou uma imensa produção, apesar da morte prematura aos 37 anos. Destacam-se, entre seus trabalhos, os retratos dos papas Júlio II e Leão X e a decoração de algumas salas do Vaticano.

Tendo entre seus mais importantes trabalhos a Escola de Atenas, Rafael pintou ainda inúmeras madonas tema que fascinava os italianos —, mesclando elementos religiosos e profanos: "Não são retratos de santas, porque a sensualidade eclipsa a emoção mística que deveriam apresentar. E tampouco chegam a ser figuras humanas, porque, embora adoráveis, sua beleza é invadida por uma abstração idealista". (Gênios da pintura — góticos e renascentistas. São Paulo, Abril, 1960. p. 212.)

Michelangelo Buonarroti (1475-1564), denominado o "gigante do Renascimento" pelo destaque de suas pinturas, esculturas, arquitetura e obra poética, foi outro grande artista do Cinquecento. Retratou com maestria a dor e a paixão, e sua maior obra foi o conjunto de afrescos pintados na Capela Sistina sobre passagens da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.

No final do século XVI, o Renascimento italiano entrou em vertiginosa decadência, pois a expansão marítima e as grandes descobertas, quebrando o monopólio comercial italiano no Mediterrâneo, transferiram para o Atlântico o eixo econômico e comercial europeu. Por outro lado, os novos centros comerciais que emergiram impulsionaram os valores renascentistas surgidos na Itália.

Ao mesmo tempo, emergiu na Itália a Contrarreforma, reação católica a movimentos protestantes que teve em Roma seu centro difusor e que se indispunha contra as manifestações culturais renascentistas. Uma das primeiras vítimas da Contrarreforma foi Giordano Bruno (1548-1 600), humanista queimado vivo como herege, por ter-se insurgido contra a concepção de que o universo é feito de coisas fixas, criadas por um Deus transcendente, e ter defendido as concepções copernicanas de um universo infinito e ilimitado, em permanente transformação, que se confunde com o próprio Deus.

A expansão do Renascimento

No conjunto dos países europeus, o movimento renascentista não despertou com o mesmo ímpeto, não demonstrou o apego íntimo aos clássicos, nem enfatizou o humanismo, como aconteceu na Itália. Ao contrário, espelhou características específicas em cada região, desenvolvendo um humanismo bem aos moldes cristãos: preocupação com problemas de ordem prática, predominância da ética sobre a estética. A literatura e a filosofia tiveram maior destaque, em detrimento da pintura e da escultura.

Países Baixos

O progresso comercial dos Países Baixos (Flandres e Holanda) e a sua posição privilegiada na Revolução Comercial fizeram surgir nessas regiões grandes renascentistas, como Erasmo de Rotterdam, os irmãos Van Eyck, Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel.

Erasmo de Rotterdam (1466-1536), considerado o "príncipe dos humanistas", usou uma linguagem simples e elegante para esclarecer problemas teológicos e superar a angústia metafísica da Europa de sua época: devido à tensão religiosa, criada pelo reformista protestante Lutero, vivia-se a contestação de valores cristãos seculares, como a unidade da Igreja, a autoridade papal suprema. Além disso, fervilhavam críticas ao comportamento eclesiástico e a alguns pontos doutrinários (o livre-arbítrio, a importância da liturgia etc.).

Nesse contexto, desprezando as doutrinas escolásticas, Erasmo escreveu Elogio da loucura, obra em que denuncia algumas atividades da Igreja e a imoralidade do clero, delineando a atuação da Reforma protestante. Entretanto, se por um lado estimulou o aparecimento do protestantismo, por outro, condenou a Reforma, pois defendia a tolerância e a humildade como os caminhos mais sensatos para se alcançar o verdadeiro cristianismo. Erasmo condenou publicamente o reformador Lutero pela criação de novos dogmas que substituíam os papais. Segundo o próprio Erasmo, "cada religião pode compendiar-se com uma só palavra: paz, e a paz religiosa somente pode existir limitando-se ao menor número possível em definições teológicas"

Erasmo é também autor de Adágios e Colóquios, por meio dos quais critica a sociedade da época, recorrendo a concepções clássicas, como o antropocentrismo. Numa passagem de Colóquios, por exemplo, o papa Júlio II, personagem principal, encontra, após sua morte, a porta do paraíso fechada e ameaça São Pedro de excomunhão caso não a abrisse imediatamente. O diálogo entre o papa e Pedro se faz como entre um prepotente pecador e a verdade pura da Igreja vitoriosa.

Na pintura flamenga, destacaram-se os irmãos Van Eyck, com a tela Adoração do cordeiro, obra executada com a nova técnica a óleo. Sobressaiu também a pintura de Pieter Brueghel, que se singularizou pelo aspecto social impresso em suas telas, em que aparecem homens do povo e festas populares, como casamentos e feiras de aldeia. Destacam-se O alquimista, Banquete nupcial, Dança campestre, Os cegos.

Alemanha

Na Alemanha, a efervescência artística foi beneficiada pela Reforma luterana e pelas guerras que se seguiram. Os maiores expoentes na pintura foram: Albrecht Dürer (14711528), autor de Autorretrato, Natividade e Adoração da Santíssima Trindade; e Hans Holbein (1497-1543), autor de Cristo na sepultura e de retratos de importantes personagens da época, como Henrique VIII, Erasmo e Thomas Morus.


Inglaterra

Na Inglaterra, o Renascimento só floresceu efetivamente no século XVI, após a Guerra das Duas Rosas, quando despontaram os literatos Thomas Morus e William Shakespeare, seus maiores expoentes.

Thomas Morus (1476-1535), chamado o chanceler filósofo, era amigo íntimo de Erasmo de Rotterdam. Escreveu Utopia, obra em que descreve ' 'um país de lugar nenhum", onde as leis são poucas, a administração beneficia, sem distinção, todos os cidadãos, o mérito é recompensado, a riqueza é repartida e todos vivem uma vida perfeita. Utopia exalta a paz, a compreensão e o amor e condena a intolerância, o desejo pelo poder e pelo dinheiro. Morus mescla em sua obra os ideais da civilização clássica com os do cristianismo —forjando uma sociedade perfeita em decorrência do uso da inteligência e da razão.

Foi com o teatro de William Shakespeare (1564- 1616), entretanto, que a Inglaterra mais se evidenciou no Renascimento. Suas tragédias conseguem traduzir verdades eternas, espelhando um gênio com liberdade de espírito e descrença nos dogmas. Nelas, o drama psicológico faz vir à tona a intensidade da alma humana com todas as suas múltiplas faces.

Shakespeare firmou um trabalho que ainda hoje fascina artistas e plateias em todo o mundo, seja em dramas como Romeu e Julieta, Otelo, Rei Lear, Macbeth e Hamlet, em dramas históricos como Ricardo III, Júlio Césare Antônio e Cleópatra ou em comédias como As alegres comadres de Windsor.

França

Rabelais demonstrou todo o talento do humanismo francês em Gargântua e Pantagruel, comédia que satiriza a Igreja, a escolástica, as superstições e a repressão, em oposição à glorificação do homem, da liberdade e do individualismo. Na filosofia, Michel Montaigne, com a obra Ensaios, expressou seu ideal de equilíbrio: o sentimento de estar em harmonia com o universo aceitando-o como ele é.

Espanha

A Espanha viveu do século XVI ao XVII um clima antagônico: de um lado, as riquezas das grandes navegações, que poderiam favorecer o desenvolvimento cultural; de outro, o cristianismo, que o bloqueou com o movimento da Contrarreforma. Mesmo nesse contexto contraditório, despontaram artistas como o pintor Domenikos Theotokopoulos, conhecido como El Greco (1 541-1614), cujas mais célebres telas são O enterro do conde Orgaz e Vista de Toledo sob a tempestade.

No teatro destacaram-se Tirso de Molina (1 571-1 648), autor da dramatização histórica Don Juan, e Lope de Vega (1562-1635), produtor de mais de duas mil peças, a maioria comédias. O maior escritor da Renascença espanhola, entretanto, foi Miguel de Cervantes (1547-161 6), autor de Dom Quixote, obra considerada a maior sátira já produzida em todos os tempos.

Portugal

Portugal, que viveu praticamente os mesmos problemas da conjuntura espanhola, apresentou um movimento humanista intimamente relacionado com as grandes navegações. Por isso, foram expressivos a Epopeia, a historiografia e o teatro. Os ideais estéticos do Renascimento chegaram a Portugal com Sá de Miranda (1481-1558), após viagem à Itália. No teatro, Gil Vicente (1465-1536) destacou-se com seus autos, como o Auto da visitação e o Auto dos Reis Magos. Contudo, o maior brilho literário coube ao poeta Luís Vaz de Camões (1525-1580), com seu épico Os Lusíadas, a maior Epopeia em língua portuguesa.

O Renascimento e a música

O pioneirismo do estilo musical renascentista coube aos franco-flamengos. A virtuosidade, o refinamento talentoso passaram a ser o eixo da nova música. Entre os músicos flamengos, destacou-se Josquin des Prés (1445-1521), que introduziu em suas missas estribilhos populares que chegavam a ser libertinos, bem como observações maliciosas muito distantes da tradicional liturgia. A nova corrente renascentista levou à complexidade da polifonia e à distinção entre música religiosa (missa, motete, antífona) e música profana (fratola, canzonetta, madrigal).

Após Josquin, até o fim do século XVI, período do Alto Renascimento, duas tendências se firmaram: a dos protestantes luteranos e a dos católicos. Deixando de usar a liturgia católica em suas cerimônias, os luteranos buscaram entre o povo um tema musical mais ao gosto popular, criando o canto coral. Martinho Lutero (1483-1546), reformador protestante, também músico, compôs diversos hinos religiosos.

Já a Igreja católica, diante do avanço protestante, posicionou-se defensivamente no Concílio de Trento (1 563), criando a música da Contrarreforma, cujo iniciador foi Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), autor de volumosa obra — motetes, madrigais, salmos e missas, compostos para serem cantados

O renascimento científico

A efervescência cultural da Renascença impulsionou o estudo do homem e da natureza. O Universo já não era mais aceito como obra sobrenatural, fruto dos preceitos cristãos. O espírito crítico do homem partiu para a ciência experimental, a observação, a fim de obter explicações racionais para os fenômenos da natureza. Surgem então alguns cientistas de renome.

Nicolau Copérnico (1473-1543), em De revolutionibus orbium celestium, refuta o geocentrismo ptolomaico, formulando a teoria heliocêntrica, que foi completada no século XVII pelo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Tycho Brahe (1546-1601) faz observações precisas sobre os astros e Johann Kepler (1571-1630) apontou o movimento elíptico dos astros, preparando o caminho para a descoberta da lei da gravitação universal, de Isaac Newton (1642-1727).

Na medicina despontaram Miguel Servet (1 51 1-1553) e William Harvey (1578-1 657), que descobriram o mecanismo da circulação sanguínea — a circulação pulmonar pelas artérias e o retorno do sangue ao coração pelas veias. Ambroise Paré (1509-1590) defendeu a laqueação (ligação) das artérias, em lugar da tradicional cauterização, para deter hemorragias, e André Vesálio (1514-1564) transformou-se no pai da moderna anatomia, publicando em 1543 o primeiro livro extenso sobre o assunto: Sobre a estrutura do corpo humano. Vesálio atraiu estudantes de todo o mundo para as suas aulas em Pádua, fazendo da anatomia uma ciência.

O Renascimento retirou da Igreja o monopólio da explicação das coisas do mundo. Aos poucos, o método experimental passou a ser o principal meio de se alcançar o saber científico da realidade. A verdade racional precisava ser sempre comprovada na prática, empiricamente (empirismo). Assim, apesar de a Reforma e a Contrarreforma terem freado o ímpeto renascentista, estavam lançados os fundamentos que derrubariam definitivamente a escolástica, fundamentada no misticismo. A crítica, o naturalismo, a dimensão humanista culminaram no racionalismo, no empirismo científico dos séculos XVII e XVIII. Dessa forma, as principais barreiras culturais do progresso científico foram suficientemente abaladas para não mais representarem ameaça ao progresso capitalista burguês em curso.

 

Vicentino, Cláudio. História Geral. São Paulo, Scipione, 1997. Texto adaptado.

Texto Base - O Antigo Regime Europeu - Mercantilismo

 

O Antigo Regime Europeu

O século XV inaugurava um novo período do processo histórico da Europa ocidental: possuir terras já não era mais sinônimo seguro de poder; as relações sociais de dominação e de exploração também não eram as mesmas do mundo feudal; mudanças qualitativas na economia europeia abriam espaço para uma nova ordem política e social.

Tendo suas origens no feudalismo, o mundo moderno evoluiria até culminar no seu oposto — o capitalismo do mundo contemporâneo. Assim, em muitos aspectos, o mundo moderno constituiu uma negação do mundo medieval, embora ainda não se caracterizasse como um todo sólido, maduro, apresentando-se como uma época de transição. Foi o período de consolidação dos ideais de progresso e de desenvolvimento, que reforçou o pensamento racionalista e individualista, valores burgueses que iriam demolir o universo ideológico católico-feudal.

Entre os séculos XV e XVIII, estruturou-se uma nova ordem socioeconômica, denominada capitalismo comercial. Durante esse período, a nobreza, cuja posição social era ainda garantida por suas propriedades rurais e títulos — mas que não raro enfrentava dificuldades financeiras —, passou a buscar ansiosamente meios para se impor segundo os novos padrões econômicos.

Por seu lado, a burguesia, mesmo prosperando nos negócios, estava longe de ser a classe social dominante, com prestígio junto à aristocracia. Como desejasse exercer a supremacia de que se julgava merecedora por seu poder econômico, frequentemente incorreu no paradoxo de assumir valores decadentes,

como a compra de títulos de nobreza. Apenas no final da Idade Moderna, a classe burguesa reuniu meios para edificar uma ordem social política e econômica à sua própria imagem, embora somente os acontecimentos da segunda metade do século XVIII, como a Revolução Industrial, a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, consolidassem definitivamente a posição da burguesia, inaugurando a Idade Contemporânea.

Assim, sendo um período de transição, a Idade Moderna reforçou a importância do comércio e da capitalização, que constituíram a base sobre a qual se desenvolveria o sistema capitalista. Como decorrência, um novo Estado, novas normas e novos valores foram gerados segundo as novas exigências do homem ocidental.


Economia e sociedade do Antigo Regime           

Com as Cruzadas, no início da Baixa Idade Média, processou-se um conjunto de alterações socioeconômicas, decorrente do renascimento do comércio, da urbanização e do surgimento da burguesia. A junção desses elementos, por sua vez, impulsionou o processo de formação do Estado nacional, e lentamente foram sendo demolidos os pilares que sustentavam o feudalismo.

Cada vez mais ganhavam terreno a economia de mercado, as trocas monetárias, a preocupação com o lucro e a vida urbana. Assim, se por um lado o mundo medieval se encerrou em meio à crise (guerras, pestes), por outro, com o início da expansão marítima e declínio do feudalismo, afirmou-se uma nova tendência: o capitalismo comercial.

O ressurgimento do comércio na Europa e a exploração colonial do Novo Mundo americano e afro-asiático propiciaram a ascensão vertiginosa da economia mercantil No meio rural’ europeu, as relações produtivas variavam desde as feudais (senhor-servo) até as que envolviam o trabalho assalariado (proprietário-camponês), prenunciando o que viria a ser um regime de características capitalistas. A exploração do trabalhador e a expropriação de suas terras possibilitaram uma gradativa e crescente ampliação de riquezas nas mãos dos donos das terras e dos meios de produção a chamada acumulação primitiva de capitais.

O capitalismo comercial evoluiu, assim, para uma crescente separação entre capital e trabalho. Mais e mais a burguesia acumulou patrimônio e moeda, capitalizando-se, enquanto os trabalhadores foram sendo limitados à condição de assalariados, donos unicamente de sua força de trabalho. A burguesia foi, então, se preparando para o completo controle dos meios de produção, o que se consolidaria definitivamente com a Revolução Industrial.

Visando adequar o meio rural ao capitalismo comercial e reorganizar a produção mais eficientemente, segundo os moldes do capitalismo emergente, os proprietários lançaram mão de diversos recursos. Um exemplo foram os cercamentos na Inglaterra: com o desvio do uso da terra para a criação de ovelhas — tarefa que requeria pouca mão-de-obra e destinava-se à produção de lã exportada para Flandres — formou-se enorme contingente servil sem colocação no campo. Sem opções, essa massa dirigiu-se para as cidades, onde se tornou mão-de-obra disponível, mais tarde empregada na colonização da América inglesa e, principalmente, nas unidades fabris durante a Revolução Industrial.

Nas cidades, as relações produtivas também eram mescladas: o artesanato, praticado em oficinas, nas quais o mestre artesão e os artesãos auxiliares eram produtores e donos dos meios de produção, e as manufaturas, em que se processavam relações de cunho capitalista através da concentração dos meios de produção (fábricas e instrumentos) nas mãos do empresário e do pagamento de um salário em troca da força de trabalho do empregado.

Dessa forma, a sociedade do período moderno, comumente chamada de sociedade de ordens (clero, nobreza e povo), apresentava-se, na prática, dividida em uma classe de proprietários de terras (clero e nobreza), uma classe de trabalhadores (servos, camponeses livres, assalariados, enfim, a massa popular) e uma classe burguesa (mercantil e manufatureira). A Idade Moderna conheceu, então, a luta da burguesia pelo espaço social, político e ideológico.


O Estado no Antigo Regime

O Estado moderno retratou a transição do período, refletindo os interesses dos grupos sociais em conflito, ao preservar os privilégios da aristocracia feudal e abrir espaço ao novo grupo burguês ascendente. Na prática, foi o resultado da derrocada do poder universal (Igreja) e local (nobreza) e da formação das monarquias nacionais.

O Estado característico da época moderna é conhecido como absolutista, na medida em que o poder estava concentrado nas mãos do rei e de seus ministros, os quais aproveitavam as limitações dos grupos sociais dominantes — nobreza e burguesia — para monopolizar a vida política. Incapazes de exercer hegemonia (a nobreza estava em decadência e a burguesia ainda se mostrava frágil), esses grupos precisavam do Estado para preservar suas condições e privilégios; daí sujeitarem-se ao rei, reforçando o poder do Estado moderno.

De seu lado, o Estado absolutista dependia dos impostos e recursos gerados pelas atividades comerciais e manufatureiras, sendo o progresso e o desenvolvimento das atividades mercantis fatores importantes para sua sobrevivência e opulência. Por esses motivos, esse Estado mantinha em cargos do governo, além dos tradicionais elementos da aristocracia feudal, representantes da burguesia. Por isso, também, foi dinâmico na geração de bens e no incremento das finanças nacionais, incentivando o lucro, a expansão do mercado e a exploração das colônias.

Por outro lado, em virtude da extensão de sua burocracia aristocrática, procurou garantir sua sobrevivência através da tributação desenfreada, assumindo mais e mais o caráter parasitário, fundado nos privilégios feudais. Essa característica limitadora do capitalismo e do desenvolvimento econômico burguês possibilitaria o surgimento e avanço das ideias liberais, que levaram posteriormente às revoluções burguesas que demoliram o Estado absolutista.

Devido à preponderância, nesse período, do absolutismo — poder capaz de definir regras, práticas e ações em todos os níveis consolidou-se a concepção de um Estado interventor, que devia atuar em todos os setores da vida nacional. No plano econômico, essa intervenção manifestou-se através do mercantilismo.


O mercantilismo

Evidenciando a íntima relação entre Estado e economia, o mercantilismo caracterizou-se por ser uma política de controle e incentivo, por meio da qual o Estado buscava garantir o seu desenvolvimento comercial e financeiro, fortalecendo ao mesmo tempo o próprio poder. Não chegou a constituir uma doutrina, um sistema de ideia, um conjunto coerente de práticas e ações; foi, na verdade, um conjunto de medidas variadas, adotadas por diversos Estados modernos, visando à obtenção dos recursos e riquezas necessários à manutenção do poder absoluto. Cada Estado procurou as medidas que mais se ajustavam às suas peculiaridades: alguns concentraram-se na exploração colonial, na obtenção de metais preciosos; outros, nas atividades marítima e comercial; e outros, ainda, optaram por incentivar a produção manufatureira.


O mercantilismo no século XVI

No final do século XV, e especialmente no século XVI, os países ibéricos (Portugal e Espanha) comandaram as transformações da economia europeia. Pioneiros no processo de expansão ultramarina, foram igualmente os primeiros a se beneficiar com as riquezas das terras descobertas. A exploração de suas colônias foi orientada por políticas mercantilistas semelhantes, que se traduziam na exploração intensa dos recursos naturais especialmente no caso da Espanha, cujas colônias eram riquíssimas em metais preciosos — e na defesa do monopólio de comércio, o chamado exclusivo colonial.

Assim, todos os produtos que chegavam à colônia ou saíam dela tinham de passar pela metrópole, concretizando sua sujeição absoluta ao Estado explorador, característica do pacto colonial. Cabia à colônia, além de consumir os produtos manufaturados pela metrópole, produzir segundo as exigências da economia mercantilista, garantindo lucros e rendas à Coroa e à burguesia mercantil.

Devido ao enriquecimento da Espanha pelo acúmulo de metais preciosos, a concepção metalista predominou no mercantilismo europeu dessa época. Entretanto, o enorme afluxo de metais preciosos provocou, a longo prazo, efeitos negativos sobre a economia espanhola ao desestimular as atividades agrícolas e manufatureiras. Tornando-se cada vez mais dependente de importações, a Espanha não conseguiu manter ao 'longo do tempo saldos positivos em sua balança comercial.

Além disso, a abundância de ouro e prata, aumentando o volume monetário, provocou, no século XVI e principalmente no XVII, uma extraordinária elevação nos preços, que se generalizou por toda a Europa, favorecendo os Estados produtores, como França, Inglaterra e Holanda e respectivas burguesias comerciais e manufatureiras, que ampliavam seu processo de entesouramento e capitalização.

Assim, já no final do século XVII, quem liderava economicamente a Europa não eram mais os países ibéricos, mas as nações que se voltaram para o comércio e para a produção como meio de entesouramento.


O mercantilismo dos séculos XVII e XVIII

Ainda no século XVI, França e Inglaterra criaram medidas protecionistas e subvenções às manufaturas que lhes permitiram assumir, nos dois séculos seguintes, uma posição de liderança na economia europeia, adotando medidas mercantilistas peculiares.

Na França dos Bourbons, desde os ministros Sully e Laffémas, de Henrique IV (15891 61 0), a Richelieu, de Luís XIII (1 610-1643), o Estado incentivou a produção e o comércio, bem como a construção naval. Entretanto, foi no reinado de Luís XIV (1661-1715), sob a orientação do ministro das finanças, Colbert, que a intervenção estatal foi severa e sistemática. Estimulou-se a produção manufatureira, especialmente de artigos de luxo (joias, móveis, porcelanas, rendas, sedas etc.), muitos deles produzidos pelas manufaturas reais, de propriedade do Estado. Nessa época, a França tornou-se famosa pela excelente qualidade de seus produtos, conquistando o mercado externo.

Na Inglaterra, desde os Tudor até os Stuart, o Estado adotou diversas medidas de proteção ao comércio marítimo, como o estímulo à construção naval e a criação de leis proibindo que navios estrangeiros realizassem o transporte de produtos da metrópole e das colônias inglesas. Dessa forma, além de evitar os enormes gastos com os fretes pagos aos estrangeiros, impedia-se a evasão de moeda para o exterior, permanecendo todo o lucro do comércio no país.

Esses Atos de Navegação, como eram chamados, foram decisivos para o desenvolvimento comercial da Inglaterra, que assim pôde desbancar seus concorrentes, especialmente os holandeses, que até então dominavam o transporte marítimo europeu e colonial.

Além de estimular a marinha mercante, o Estado inglês incentivou a produção e as atividades financeiras, criando também diversas companhias de comércio. Nascidas de maneira familiar, as empresas capitalistas logo atraíram investidores, ampliando os negócios e os lucros.

Em 1688 e 1689, a Revolução Gloriosa levou à implantação da monarquia parlamentar, e as estruturas políticas pró-burguesia foram definitivamente fortalecidas na Inglaterra, sustentando o desenvolvimento quase ininterrupto do capitalismo e criando condições para que esse país se tornasse a maior potência econômica do mundo moderno. Na França, por outro lado, as instituições políticas transformaram-se num obstáculo à evolução capitalista, que seria superado apenas no final do século XVIII, com a Revolução Francesa.

No século XVIII, buscou-se mais do que nunca complementar a economia metropolitana por meio da exploração desenfreada das colônias, submetidas ao pacto colonial. Contudo, ao longo desse século, tornaram-se cada vez mais frequentes as críticas à política intervencionista do Estado absolutista, tanto na Europa quanto no mundo colonial.

A burguesia ascendente, já senhora da economia, não mais aceitava um Estado que não satisfizesse seus anseios. Exprimindo repúdio aos componentes ainda não completamente capitalistas do período, referia-se à estrutura social, econômica, política e cultural dessa época — a divisão da sociedade em ordens, os privilégios ainda existentes do clero e da nobreza, além da política mercantilista e de inúmeras obrigações feudais, como o imposto da talha e da corveia — como Antigo Regime.

Na política, o absolutismo, a Corte e o controle de todas as esferas da sociedade pelo poder real sufocavam o anseio por um mundo novo, compatível com a vitoriosa ordem capitalista. Surgiam, então, as condições para a formulação de princípios econômicos antimercantilistas, de concepções inovadoras como as desenvolvidas pelos adeptos da fisiocracia e do liberalismo econômico, que iriam sepultar definitivamente o Antigo Regime.

Vicentino, Cláudio. História Geral. São Paulo, Scipione, 1997. Texto adaptado.