sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A quase-extinção da face social do Estado

A quase-extinção da face social do Estado

PAULO KLIASS*                                                                            PUBLICADO EM 17.09.2020

Na proposta de “reforma” administrativa de Guedes, Saúde e Educação seriam entregues ao mercado — e presidente teria poderes absolutistas para eliminar órgãos públicos, demitir servidores e contratar aliados ou novo contingente precarizado.


Em 2018, o então candidato da extrema direita ao Palácio do Planalto corria por fora, operando em raia própria, ainda se sentindo bastante escanteado por parte significativa das elites políticas e econômicas de nosso País. Porém, apesar desse isolamento inicial, Bolsonaro conseguiu trazer para sua campanha um personagem importante, capaz de lhe facilitar o necessário livre trânsito no interior do sistema financeiro.

A partir de então, Paulo Guedes converteu-se no “Posto Ipiranga” do ex-capitão e todas as questões relativas a economia que a imprensa ou demais interessados enviavam a ele eram automaticamente direcionadas ao aprendiz de banqueiro. O interessante é que o candidato não sentia o menor constrangimento ao reconhecer em público que não entendia nada do assunto e que seu assessor iria responder a todo o tipo de dúvida apresentada.

A campanha cresceu em intenção de votos e a presença do old chicago boy era encarada como uma espécie de aval junto ao financismo para o desenho futuro da política econômica do eventual presidente. A convivência entre um deputado federal com um passado bastante intervencionista e defensor do Estado na economia e um neoliberal operador convicto a favor dos interesses da banca era, a um só tempo, desafio e incógnita.

A vitória de Bolsonaro veio combinada à entrega de uma imensa fatia de poder para Guedes. A criação de um monstrengo chamado Ministério da Economia parecia ser a confirmação da autonomia para que o mesmo formulasse e implementasse a política econômica da forma que bem entendesse. O superministro passou a ter sob seu estrito comando as antigas e tradicionais pastas da Fazenda, do Planejamento, da Indústria e Comércio e também do Trabalho. Nunca antes da história do Brasil um subordinado de Presidente da República teve tanto poder concentrado em suas próprias mãos.

Guedes & Bolsonaro: da campanha ao Palácio do Planalto

Pois então o ex-assessor do ditador sanguinário no Chile, o general Pinochet, resolveu aproveitar o espaço a ele oferecido para levar à frente seu projeto mestre. Como bom serviçal dos interesses do grande capital financeiro, Guedes se propôs a missão de destruição do Estado brasileiro e do desmonte das políticas públicas em nossas terras. Isso significa encarar sem pudor aquilo que as demais frações de nossa elite quase nunca tiveram a coragem política de fazer de forma aberta e explícita. O primeiro passo seria a desconstrução de todos os elementos previstos na Constituição de 1988 como constitutivos de nosso arremedo de projeto de Estado de Bem Estar Social.

Uma parte desse “serviço sujo” já havia sido colocada em execução pelo governo de Michel Temer e Henrique Meirelles, com a aprovação da EC 95, no final de 2016. Por meio de tal dispositivo incluído no texto constitucional, o Brasil passou a ser o único país no mundo que se propunha a congelar os gastos públicos pelo longo período de 20 anos. Enfim, nem todas as despesas orçamentárias, uma vez que aquelas de natureza financeira permaneciam livres, leves e soltas para crescer como o governo de plantão assim o desejasse. Um verdadeiro tiro no pé em qualquer intenção de projeto de desenvolvimento nacional e mesmo para necessidades mais modestas, como a adoção de medidas anticíclicas em conjunturas recessivas como a atual.

Paulo Guedes se encarregou da Reforma da Previdência redutora de direitos e demolidora do caráter público do Regime Geral da Previdência Social. Em seguida, aprofundou as maldades da Reforma Trabalhista já esboçada pelo governo anterior, destruindo os direitos previstos na CLT e institucionalizando a precariedade e a informalidade como regra “natural” de nosso mercado de trabalho.

PEC da destruição

A etapa atual, à qual se dedica com toda energia e atenção, é marcada por aquilo que a grande imprensa vem chamando de Reforma Administrativa. Mentira! A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32 não pode ser caracterizada como tal. A leitura da medida nos convence de que ela não se propõe a reformar nada, mas tão somente a destruir as bases constitutivas do Estado brasileiro. Além disso, não cabe qualificá-la como preocupada com esse todo complexo da administração pública, uma vez que seu foco é exclusivamente o aniquilamento dos servidores. O único argumento repetido por Guedes à exaustão é o mantra da crise fiscal. Mas a própria Exposição de Motivos, que acompanha a PEC, reconhece que ela não surtirá efeitos a curto prazo, mesmo na lógica austericida dos cortes e mais cortes.

A lista de absurdos e equívocos presentes no interior da PEC é imensa. A começar pela motivação explicitada no discurso da austeridade, a partir do qual não haveria mais recursos para dar continuidade às despesas com pessoal nos três níveis da administração estatal em nosso País: federal, estadual e municipal. Como sempre faz nessas horas, o governo mente e exibe gráficos com uma suposta explosão de gastos com recursos humanos ao longo dos últimos 12 anos. Teria ocorrido um crescimento “insustentável” de 145%! O detalhe é que o estagiário foi orientado a não corrigir os valores pelos índices de inflação. Um truque típico da malandragem sem nenhum caráter. Assim, a relativa estabilização ocorrida nesse tipo de despesa se transformaria em um crescimento “descontrolado” das rubricas federais (sic).

A PEC introduz de maneira sorrateira um novo princípio jurídico norteador das ações da Administração Pública no art. 37 da CF. Trata-se da “subsidiariedade”, que aparece de forma matreira no teto constitucional e passaria a dar a legitimidade necessária a todo o processo de privatização e aniquilação da administração. Afinal, os serviços públicos, por exemplo, a partir de sua adoção como fundamento jurídico, deverão ser objeto de produção e oferta por parte do capital privado prioritariamente. De acordo com a nova redação, ao Estado caberia apenas um papel suplementar e subsidiário. Ou seja, no limite estaria pavimentada a via para a sua própria quase-extinção.

Estabilidade do servidor: garantia ao cidadão

A PEC retrocede para o período anterior à nova Constituição e elimina a grande conquista do Regime Jurídico Único (RJU). Sob o discurso falacioso da necessidade de modernizar o Estrado brasileiro, a proposta introduz a possibilidade de constituição de um novo contingente de servidores para União, Estados e Municípios. Assim, os novos contratados não estariam submetidos às caracterizações republicanas essenciais da força de trabalho no serviço público, tais como o concurso de acesso, a estabilidade, os salários condizentes com as tarefas exigidas, entre outros elementos.

Ora, está mais do que evidente que a estabilidade não é privilégio do servidor, mas sim uma garantia para a população de que o serviço público não será descontinuado por mero capricho ou interesse do governante de plantão. Trata-se de um instituto que assegura a manutenção de políticas públicas como educação, saúde, previdência, saneamento, segurança pública, entre tantas outras. A solução para os casos de eventual irregularidade cometida ou ineficiência comprovada passa pela necessária regulamentação da avaliação de desempenho.

No entanto, ao contrário da narrativa construída pelo governo, a medida deixa de fora de sua abrangência as carreiras e categorias que mais pesam quando se trata de combater altos salários, privilégios e falta de transparência. Assim os integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público e os militares, por exemplo, não estariam subordinados às novas regras da flexibilidade destruidora.

PE do autoritarismo e da corrupção

A PEC passa a conferir poderes extraordinários ao Chefe do Executivo. De acordo com o texto apresentado, o Presidente da República passa a ter competência para criar e extinguir todos os tipos de órgãos de sua esfera de administração pública, eliminando a atual necessidade de aprovação pelo poder legislativo. Assim, bastaria uma canetada de Bolsonaro para que as universidades que tanto lhe incomodam sejam eliminadas. O mesmo destino pode ser conferido aos órgãos que apresentam informações que lhe desagradem, como o IBAMA, o INPE ou aqueles que se encarregam de ações contra o trabalho escravo. A PEC retroage quase quatro séculos, inspirada no dito atribuído ao absolutismo do Rei Luis XIV da França: “O Estado sou eu!”.

Imaginemos agora o que ocorreria em cada um dos 5.570 municípios, nos 26 Estados e Distrito Federal, além do governo federal, caso tais intenções fossem transformadas em realidade. Se o Chefe do Executivo passasse a contar com o poder de demitir os funcionários a seu bel prazer, estaríamos frente a uma completa degradação da qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, em razão da alta rotatividade de pessoal e dos critérios obscuros e subjetivos para sua contratação. Esse é o caminho para institucionalizar pelo Brasil afora a maneira pela qual a família Bolsonaro sempre pautou sua relação com os recursos públicos. São os esquemas das ilegalidades conhecidas por “rachadinhas”, o mandonismo no trato com os servidores e o manto de “naturalidade institucional” para os métodos de apropriação privada de dinheiro público com a conivência de seus subordinados. Em poucas palavras: trata-se da institucionalização da corrupção.

O Congresso Nacional só tem uma alternativa para a tramitação da PEC 32. Deve rejeitá-la. Caso haja realmente algum interesse no interior do Legislativo em promover melhorias e aperfeiçoamentos na administração pública, a pauta será muito bem-vinda. Há bastante o que fazer se a intenção for de fato aquela de tornar o Estado brasileiro mais útil e competente na sua relação com o conjunto dos setores sociais. Mas a estratégia deveria ser oposta à da PEC 32. Não se trata de fazer terra arrasada da administração pública, mas de torná-la verdadeiramente transparente, eficiente, republicana e democrática.

* Paulo Kliass economista.

Fonte: http://grabois.org.br/portal/artigos/155220/2020-09-17/a-quase-extincao-da-face-social-do-estado

Trabalho escravo contemporâneo e a pandemia de Covid-19*

 Trabalho escravo contemporâneo e a pandemia de Covid-19*

POR SILVIA PINHEIRO*PUBLICADO EM 18.09.2020

    Por decorrência da Covid-19, estima-se um aumento na taxa de desocupação de 12% nos últimos seis meses, resultando em mais 12,4 milhões de pessoas na rua. Esse contingente funciona como reserva de mão de obra barata disponível à exploração e à escravização.

Trabalho escravo contemporâneo

A vulnerabilidade ao trabalho escravo vem sendo fortemente impactada pela pandemia do coronavírus, segundo relatório da Fundação Walk Free, publicado em agosto de 2020. Estima-se em 40,3 milhões o número de escravos contemporâneos no mundo hoje e as mulheres são a grande maioria, correspondendo à 71% do total. O relatório do Walk Free de 2020 sobre efeitos da pandemia no mundo do trabalho, além de relatar a situação em que se encontram migrantes trabalhadores, aponta medidas que algumas empresas vêm adotando no combate, dependendo do grupo ou setor.

Em Singapura, por exemplo, trabalhadores da construção civil foram colocados em quarentena em dormitórios comuns, sem equipamento de proteção, alimentação inadequada e acomodações precárias. Do total de casos de contágio nas últimas semanas, 80% concentram-se em dormitórios de trabalhadores da construção civil no mesmo país. Trabalhadoras do setor da moda e vestuário na Indonésia e Camboja estão sob forte pressão de demissão e de redução de horas de trabalho por causa do cancelamento de pedidos das grandes lojas de departamentos e marcas internacionais, sem avisos ou compensações prévias. Desse modo, demissões em massa, licenças não remuneradas e reduções de horas de trabalho convivem com manutenção de compromissos salariais, financiamento de retorno dos trabalhadores migrantes aos países de origem e transformação de mídias sociais corporativas em canais de disseminação de informações sobre coronavírus.

Nos locais em que a economia informal é predominante os efeitos são devastadores, como no Brasil. O auxílio emergencial do Estado para conter os efeitos da desocupação da mão de obra teve 108,4 milhões de pessoas cadastradas, número maior do que toda a força de trabalho brasileira no primeiro trimestre de 2020, de 105,1 milhões de pessoas. Por decorrência da Covid-19, estima-se um aumento na taxa de desocupação de 12% nos últimos seis meses, resultando em mais 12,4 milhões de pessoas na rua, agravando ainda mais o quadro da informalidade no país. As primeiras interpretações dos dados sobre o impacto das medidas destacam que trabalhadores informais que não se encontram no cadastro de beneficiários do Bolsa Família são os mais prejudicados pelos efeitos da pandemia. Esse contingente funciona como reserva de mão de obra barata disponível à exploração e à escravização.

O Monitor da OIT de junho de 2020 reforça que a pandemia vem atingindo, desproporcionalmente, mulheres pobres e informais. Nos países de baixa e média renda, aonde 90% da mão de obra empregada está na economia informal, são as mulheres as mais atingidas. Na América Latina setores em que a força de trabalho feminina é preponderante estão fortemente impactados pelo vírus, como arte, cultura e entretenimento, alimentação, hospedagem, cuidado e trabalhos domésticos.
Relatório recente da Oxfam sobre a prática do “cuidar” aponta que 12,5 bilhões de horas são dedicadas por meninas e mulheres no mundo, diariamente, ao “cuidado” e de forma não remunerada.[1] Mulheres representam mais de 70% da mão de obra nas áreas da saúde e assistência social. Apesar da melhora, ainda persiste um gap entre os salários pagos às forças de trabalho feminina e masculina que chega em 29% em países de renda média-alta, como é o caso do Brasil. Adiciona-se ao agravamento da vulnerabilidade da força de trabalho feminina como resultado da pandemia, os riscos de aumento do trabalho infantil, uma vez que crianças são forçadas a acompanhar suas mães em trabalhos nas ruas e o aumento da violência doméstica registrada no mundo.
Escravidão contemporânea e globalização
A permanência de condições análogas às de escravo, até os dias de hoje, é explicada de algumas formas. Kevin Bales, professor e pesquisador do Laboratório de Direitos (Rights Lab) na Universidade de Nottingham, considera que o excedente de mão de obra “descartável”, vulnerável ao trabalho escravo, é resultado da globalização econômica. Alerta o autor que a escravidão contemporânea está cada vez mais relacionada com atividades ilícitas associadas ao tráfico de pessoas, drogas, órgãos, armas e exploração sexual.
Diversamente da escravidão colonial considerada lícita, a atual é ilegal. Outra diferença em relação à escravidão colonial está no custo do escravo contemporâneo que é menor, pois ele encontra-se disponível em “bolsões” de pobreza nos países pobres e ricos. Níveis elevados de desigualdade atravessam de forma transversal o sul e norte global. Nos países mais ricos, são vítimas da escravidão os imigrantes provenientes de áreas de conflito, em fuga por motivos religiosos, genocídio étnico, pobreza extrema e mudanças climáticas, enquanto nos países pobres são os migrantes domésticos em busca de melhores condições de vida. No entanto, dados recentes apontam para o resgate de imigrantes em situações de escravidão, como chineses, venezuelanos e senegaleses no Rio de Janeiro, reforçando a mesma tendência em países em desenvolvimento.
Leonardo Sakamoto da Repórter Brasil, e o pesquisador da Universidade de Manchester, Nicola Phillips,[2] explicam como em certos setores da economia, as cadeias globais de produção ou redes globais de produção enxergam na força de trabalho vantagem competitiva, analisando áreas de pobreza crônica no Brasil, em pleno século XXI. O desmembramento da produção em elos espalhados por distintos locais do planeta gera emprego e renda, mas a inclusão desses trabalhadores nas cadeias globais reproduz condições análogas à escravidão em certos setores.
A relação entre a incidência de trabalho escravo com regimes autoritários foi analisada em artigo recém-publicado,[3] com base nos índices de prevalência de escravidão do Global Slavery Index. Segundo Landman, os dados do GSI não apresentam claras evidências sobre uma relação linear entre escravidão e globalização, havendo casos em que essa é inversa. Dentre os resultados de seu estudo, a existência de instituições democráticas, organizações da sociedade civil organizadas e debate sobre direitos humanos seria o fator que mais impacta na incidência de trabalho escravo no mundo hoje.
No Brasil, escravidão contemporânea é violação da dignidade da pessoa humana. Trabalho escravo é crime e consta no Código Penal, medido não pela forma da relação de trabalho, mas por sua substância, qual seja, condições de trabalho aviltantes. Para configurar escravidão a falta de consentimento do trabalhador não importa. Essa é uma condição para a configuração de trabalho forçado, também considerado crime pela lei brasileira. Condições análogas à escravidão afetam a dignidade da pessoa humana porque transformam o indivíduo em “coisa” que se explora, transfere, vende, compra e descarta. Condições degradantes de trabalho, sanitárias, ambientais, de acomodação e jornadas exaustivas, afetam a condição de ser humano de um trabalhador ou trabalhadora, tornando senso comum sua condição de subordinados sem direitos, restando aberta a porta para a posse e controle de uma pessoa por outra.
A incontestável raiz histórica do trabalho escravo no Brasil, somada a aspectos socioeconômicos inerentes às cidades, resulta hoje em padrões de exploração que se reproduzem diversamente nos meios rural e urbano. Estudos preliminares sobre determinantes sociais e padrões de escravidão contemporânea em cidades, hoje em andamento no Centro de Pesquisa em Escravidão Contemporânea, Brics Policy center / PUC RJ, investiga a intersecção de aspectos que influenciam em padrões de trabalho escravo, localmente. Religião, minorias étnicas, racismo, gênero, classe, idade, migrantes, segregação e isolamento, dentre outros elementos, são fatores que sistematizados podem contribuir com a elaboração de políticas mais efetivas de combate e reintegração dos resgatados.

Trabalho escravo e o Rio de Janeiro

Durante o período do Brasil colônia, desembarcaram aproximadamente 1 milhão de africanos no Rio do Janeiro para servirem de escravos em fazendas no sudeste e sul. Com a abolição da escravatura em 1888, os arredores do Cais do Valongo se transformaram em espaços ocupados por escravos recém-libertos de diversas nações e imigrantes europeus. Mais tarde, esse contingente é atraído para fábricas têxteis recém-criadas no eixo Rio de Janeiro e São Paulo com apoio do recém-criado Banco do Brasil.
O emprego de crianças e mulheres era comum nas fábricas Têxtil Bangú e Cia América fabril no Rio Janeiro. Existiam inclusive punições por “brincadeiras no serviço”, sendo frequentes os acidentes letais com crianças. Empregar mulheres e crianças significava economia com salários menores e, mais ainda, enfraquecia o movimento operário, pois dificilmente esses dois grupos ofereciam resistência aos patrões.[4] Tal modelo se assemelha ao do início da revolução industrial na Inglaterra no século XVIII, sendo reproduzido no Brasil na primeira república.
Em 1910, tem-se notícia da primeira greve geral no Brasil liderada por mulheres trabalhadoras do setor têxtil, por aumento de salário e redução da jornada de trabalho. A greve geral, iniciada em São Paulo, contagiou as trabalhadoras dos setores têxteis do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Mais tarde, a especulação imobiliária e a concorrência internacional do algodão dos Estados Unidos inviabilizaram a produção têxtil no Rio de Janeiro. Hoje, praticamente informal, é pulverizada e ligada à moda praia, indústria do carnaval e oficinas de fornecimento para grandes marcas cariocas. Note-se que são centenas de facções e confecções localizadas nos subúrbios e favelas.
Atualmente, 22% da população do Rio de Janeiro reside em favelas, onde a economia informal prevalece e é ligada ao mercado formal fora da favela. A cadeia produtiva da moda é um exemplo. Milhares de mulheres costureiras trabalham, individualmente ou em coletivos de microempreendedoras individuais, atendendo aos pedidos de pequenas e grandes lojas e de academias nas zonas sul e norte da cidade. Enquanto a demanda por produção é sazonal, aumentando no Carnaval ou verão, a oferta de mão de obra é grande e permanente, depreciando o valor das horas de trabalho, combinadas com jornadas exaustivas nas oficinas ou em casa. Hoje, são as milhares de costureiras nas favelas e subúrbios que formam importante frente de combate ao coronavírus, produzindo máscaras e doando para centros de saúde e comunidades junto com cestas básicas e produtos de limpeza, formando elo fundamental na corrente que liga bairros de classe média com periferias, jamais visto.
No Rio de Janeiro, dados oficiais mostram que as maiores vítimas de trabalho escravo estão nas plantações de cana no norte fluminense, seguidos de trabalhadores no setor da alimentação nos centros urbanos, com destaque para chineses. O trabalho escravo urbano se esconde atrás da informalidade, nos subúrbios e favelas e pode estar ligado ao crime. Existe forte indicação de que a escravização de imigrantes chineses, em ascensão no Rio de Janeiro, envolve diversos países e tenha vínculo com “máfias” internacionais ligadas ao tráfico de pessoas e escravidão humana, entre outros crimes internacionais.
Nos locais em que a segregação é forma de controle por grupos políticos, religiosos ou ligados ao crime, não entram inspetores. Desse modo, o número de escravos nas cidades em que o percentual de moradores de favelas é alto, normalmente, está subestimado. No entanto, a pandemia pode deixar um legado ao romper com a invisibilidade. Lideranças nas favelas e movimentos sociais fazem uso das mídias sociais para comunicar não só a realidade do descaso do Estado que os afeta diretamente, mas também avanços e o maior deles é a organização social. Sem organização social, as verdadeiras causas da subordinação e da exploração não são confrontadas e sem isso tornam vazias as estratégias de libertação de padrões de subordinação que se reproduzem de distintas maneiras, chegando inclusive a formas análogas a de escravo em pleno século XXI.

* Artigo publicado originalmente em Diplomatique Brasil 
**Silvia Pinheiro é professora e coordenadora do Centro de Pesquisa em Escravidão Contemporânea do BRICS Policy Center/PUC-Rio.
[1] OXFAM Brasil. Tempo de cuidar, janeiro de 2020.
[2] Nicola Phillips & Leonardo Sakamoto. Global Production Networks, Chronic Poverty and ‘Slave Labour’ in Brazil. 2012
[3] Todd Landman & Bernard W. Silverman. Globalization and Modern Slavery.2020
[4] Carlos Molinari Rodrigues Severino. Menores dentro da indústria têxtil: uma análise da Fábrica Bangu durante a Primeira República. UNB. 2015.

domingo, 13 de setembro de 2020

Em defesa da Vida, da Democracia e do Emprego

Leia o ‘Manifesto em defesa da vida, da democracia e do emprego’

DA REDAÇÃOPUBLICADO EM 02.09.2020

Sete fundações partidárias lançaram nesta quarta-feira (2) o manifesto Em defesa da vida, da democracia e do emprego,elaborado para fazer frente aos prejuízos humanos, econômicos e sociais provocados pela pandemia de Covid-19, que assola o país sem que haja uma resposta à altura do governo federal.

O documento é assinado pelas fundações partidárias que integram o Observatório da Democracia: Lauro Campos/Marielle Franco, (FLCMF/PSoL); João Mangabeira (FJM/PSB); Leonel Brizola/Alberto Pasqualini (FLBAP/PDT);Maurício Grabois (FMG/PCdoB); Perseu Abramo (FPA/PT); Ordem Social,(FOS/PROS); e Cláudio Campos(FCC).

 O manifesto baseia-se no surgimento no período recente de documentos elaborados por diversos setores com propostas de combate àcrise sanitária, são documentos que se completam e foram elaborados por um amplo leque de forças políticas e entidades da área de saúde, entre eles “Sugestão de agenda econômica mínima”,aprovado pelo movimento Direitos Já!, que reúne lideranças de 17partidos; o “Plano nacional de enfrentamento à pandemia daCovid-19”, aprovado pela Frente pela Vida, que reúne 14 das principais entidades de saúde do país; além de documentos assinados pelos partidos PDT, PT, PSB e PCdoB com propostas contendo medidas econômicas e sanitárias para combater a crise. O texto completo está disponível neste link. 


Belluzzo: com carteira verde e amarela, retornaremos ao regime anterior à revolução industrial

EDUARDO MORETTI, RBA                                                                                                            PUBLICADO EM 08.09.2020 
Insensível à crise econômica e no mercado de trabalho, a ideia do governo de instituir a carteira de trabalho verde e amarela continua em pé. Embora a Medida Provisória 955/20, que criava o contrato instituindo a “novidade”, tenha perdido a validade em agosto, Bolsonaro já afirmou que vai apresentar um novo texto. Na opinião de Belluzzo, a ideia do governo é mais do que uma forma de se dispensar as empresas de respeitar os direitos dos trabalhadores, já que a proposta cria legalmente o salário por hora.

Apesar de a indústria brasileira estar em franco declínio e o desemprego em patamares negativos assustadores, o que deveria preocupar os empresários, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem apoiado o governo de Jair Bolsonaro desde sempre. A entidade publicou em seu site uma pesquisa segundo a qual, em agosto, o índice de confiança no setor vinha crescendo. “Empresários de todos os setores estão confiantes”, diz a entidade, apesar de não haver nenhum sinal de plano governamental que aponte para a retomada do crescimento.

A própria CNI constata, em outra publicação, que a indústria do país está em trajetória de queda desde 2009. “Com a nova retração em 2019, a indústria nacional mantém perda de relevância no cenário global e passa a ocupar a 16ª posição”, diz a entidade.

Como se explica tal contradição? “Você acha que eles vão deixar de apoiar o governo porque a indústria está numa situação ruim? Não há uma relação de uma coisa com a outra”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Não é absurdo, é da vida contemporânea. Eles se agarram ao que corresponde mais à ideologia deles. As pessoas agem contra o que seriam os seus interesses.”

O ministro da Economia, Paulo Guedes, que episodicamente é dado como praticamente fora do governo, continua apoiado pelo mercado, embora o país esteja “uma lambança, uma desorganização, uma confusão”, na avaliação de Belluzzo. “A aposta deles (do mercado) é nas reformas e no Paulo Guedes, e eles acabam tolerando algumas violações”, diz. Para o economista, o teto de gastos, instituído ainda no governo de Michel Temer, é “insustentável”. “É uma das ideias mais esdrúxulas que eu já vi.”

Mesmo assim, a agenda de Paulo Guedes segue no Congresso Nacional, com apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “O Maia parece que é preparado, mas é despreparado. Ele está sempre com essas posturas e atitudes liberaloides, e o país está à deriva”, constata o economista. “É muito grave, porque vamos retornar ao regime de contrato de trabalho anterior à revolução industrial, o regime do putting-out, em que você pagava por hora, ou por peça etc. Ou seja, você está dissolvendo as relações salariais”, afirma Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista à RBA.

O mercado parece que continua apostando em Paulo Guedes, embora sempre tenha o boato de que ele pode cair a qualquer momento…
O mercado está apostando em qualquer coisa. E não é porque Paulo Guedes vai ter umas derrotas que vai sair. Ele vai tentar ficar o tempo inteiro. Eles acabaram de retirar (o pedido de urgência) da reforma tributária da Câmara. Está tudo uma lambança, tudo uma desorganização, uma confusão. E ele está brigando com o Maia. O fato é que o país está à deriva.

Eles podem brigar, mas Rodrigo Maia continua apoiando a agenda de Paulo Guedes, não é?
O Maia parece que é preparado, mas é despreparado. Ele está sempre com essas posturas e atitudes liberaloides, mas o país está à deriva, e todas essas reformas, e a maneira como estão propostas, não vão chegar a lugar nenhum. Não têm nada a ver com a possibilidade de recuperar o crescimento.

Segundo analistas políticos, o mercado é que tem sustentado o governo e Paulo Guedes. Ou seja, a situação de sustentação continua…
Sim, e eles estão tolerando inclusive claras violações do regime orçamentário. Mas o mercado é assim. A forma de coordenação da economia e de controle está no mercado financeiro, estruturalmente. Se as pessoas não sabem isso, não dá para entender nada. Mas eles exercem esse poder de uma maneira muito peculiar. A aposta deles é nas reformas e no Paulo Guedes, e eles acabam tolerando algumas violações, porque preferem observar as violações, não fazer nada e continuar apoiando.

Violações de que tipo?
Violações das regras que eles considerariam adequadas para a gestão fiscal, por exemplo. Vai ocorrer um momento em que o teto de gastos vai ser violado, porque é impossível cumprir, é insustentável. É uma das ideias mais esdrúxulas que eu já vi. Aliás, a reforma da Previdência era apresentada como a bala de prata das reformas que ele estava pretendendo. O que aconteceu? Teve reforma da Previdência e não aconteceu nada.

Só perda de direitos…
Sim, só isso. Agora querem o projeto de lei que estabelece a carteira de trabalho verde e amarela. O que é isso? Salário por hora, que também é uma forma de você dispensar as empresas de respeitar os direitos dos trabalhadores. É muito grave o salário por hora, porque vamos retornar ao regime de contrato de trabalho anterior à revolução industrial, o regime do putting-out, em que você pagava por hora, ou por peça etc. Ou seja, você está dissolvendo as relações salariais. E o efeito disso sobre a economia vai ser muito grave. Porque vai deprimir violentamente o poder de compra da massa de trabalhadores.

Fora que a indústria está cada dia pior, mais deprimida…
Sim, claro. E agora a CNI se deu conta de que o Brasil está caindo no ranking dos países em desenvolvimento. No final dos anos 1970, era o país mais industrializado entre eles e ocupava entre a quinta e a sexta posição no ranking global.

Não é curioso que a CNI tem apoiado o governo desde sempre?
É isso. E você acha que eles vão deixar de apoiar o governo porque a indústria está numa situação ruim? Não há uma relação de uma coisa com a outra. As pessoas pensam que tem, mas não tem. São os paradoxos da vida social brasileira. Os industriais e a indústria estão se ferrando, mas os industriais continuam apoiando o governo que está ferrando a indústria.

Como se explica esse absurdo?
Não é absurdo, é da vida contemporânea. Eles se agarram ao que corresponde mais à ideologia deles. As pessoas agem contra o que seriam os seus interesses.

Mas os industriais não estão ganhando em aplicações no mercado financeiro, em vez de investir na produção?
Sim, mas isso é assim em todo lugar do mundo. Tirando a China, as empresas industriais viraram propiciadoras de ganhos financeiros. No mundo inteiro, e no Brasil é assim também. E eles não têm espírito de corpo, espírito de classe. Não existe aqui uma corrente industrialista como já existiu no Brasil. Existiam industriais que eram comprometidos com o projeto da industrialização. Partindo do Roberto Simonsen, indo até Antônio Ermírio de Moraes. Mas essa turma acabou.

Conservadores, mas industrialistas…
Sim, conservadores mas industrialistas. Perfeitamente, é isso mesmo.

O que achou da proposta de reforma administrativa?

Acho que está muito confusa, estão tentando preservar os militares. Vai ser difícil incluir a magistratura, o Judiciário nisso, que vai apresentar sua própria reforma, e eles são muito cientes das suas prerrogativas. Vai acabar afetando fundamentalmente a faixa de menor renda do funcionalismo, porque o resto vai resistir muito, como já está ficando claro.

A reforma administrativa que tinha que fazer é pensar numa arquitetura institucional entre o governo, os bancos públicos, as empresas públicas. Mas isso não passa… Aliás, você já ouviu a palavra “indústria” da boca de algum dos membros da equipe econômica? Eles nunca pronunciaram essa palavra, porque isso não está no horizonte deles. Não sabem exatamente o que significa isso. Eles estão falando de tudo, menos da indústria.


Fonte: http://grabois.org.br/portal/entrevistas/155204/2020-09-08/belluzzo-com-carteira-verde-e-amarela-retornaremos-ao-regime-anterior-a-revolucao-industrial