Relatório do Instituto Sou da Paz mostra o peso da
vulnerabilidade social sobre os adolescentes internos
RICHARD ALDRIN/DECOM
PREFEITURA DE PRAIA GRANDE
O relatório mostra que há uma forte relação entre a
prática da primeira infração, o rompimento dos vínculos familiares e a evasão
escolar
“Desde que eu sou pequeno vejo minha
mãe trabalhando de manhã até a noite pra ganhar mil reais e sustentar quatro
bocas. Tiro de quem tem, pra mim isso tá certo”, contou Roberto, 17 anos, à
equipe do Instituto Sou da Paz. O jovem faz parte do grupo de menores de 18
anos que se envolveram com atos infracionais e cumprem medidas socioeducativas
na Fundação CASA.
Roberto descreveu a comunidade onde
morava como “um bairro entre dois bairros de gente rica”, “a favela fica no
meio”. Ao que ele viu em seu cotidiano, “asfalto e saneamento não é pra todo
mundo”. Ele conta que um dia será como eles, os “ricos”, “não sei se vai ser
trabalhando, ou no crime”.
O depoimento do jovem faz parte do
relatório “Aí Eu Voltei Para o Corre - Estudo da Reincidência Infracional do
Adolescente no Estado de São Paulo”. Suas palavras mostram que o envolvimento
infracional não está apenas associado à pobreza ou à miséria em si, mas,
sobretudo, “à desigualdade social, ao não exercício da cidadania e à ausência
de políticas sociais básicas”.
O estudo mostrou que o peso da vulnerabilidade socioeconômica é grande. Uma das entrevistadas na Fundação
relacionou a reincidência - realidade de 65% dos internos entrevistados - ao
fato de que dentro da medida socioeducativa o jovem tem acesso a cinco
refeições, ao passo que em casa é bem possível que tenha menos de três ou
nenhuma.
A reincidência, foco principal do
estudo, também pode ser explicada pelo acesso limitado a serviços públicos,
vulnerabilidade socioeconômica, discriminação e seletividade da justiça
criminal. Dentre os adolescentes entrevistados, 43% teve de contribuir
para a renda familiar durante a sua vida e 75% já havia exercido alguma
atividade remunerada, quando deveriam dedicar-se apenas aos estudos.
Segundo Ana Carolina Pekny,
pesquisadora do Instituto e uma das autoras do relatório, dentro esses
adolescentes, "há dificuldades de verbalizar algum sonho". Mas há uma
vontade de participar do mercado de consumo, impulsionada pelas desigualdades
sociais. "Todo mundo quer consumir, todo mundo quer ter coisas, pra esse
adolescente ter algo é uma forma de ser alguém no mundo", afirma
Ana.
“Filho de rico não vem para cá. A
justiça é seletiva, pune por ser pobre”, afirmou um profissional da Fundação
Casa. Tudo isso pode justificar o envolvimento infracional. Os números
corroboram as observações e são importantes frente às propostas que visam
a redução da maioridade penal e o endurecimento de sanções destinadas a menores de 18
anos que cometeram infrações, e que começaram a serem bombardeadas com mais
força no Congresso desde 2015.
“Ao deixar a Fundação CASA, 30% dos
adolescentes não retorna à escola”
O relatório mostra que há uma forte
relação entre a prática da primeira infração, o rompimento dos vínculos
familiares e a evasão escolar. “Enquanto o abandono escolar está associado ao
envolvimento infracional cinco meses mais cedo, em média, o encaminhamento para
um abrigo antecipa a idade da primeira infração em nove meses”, afirma.
Quase 70% dos jovens estavam fora da
escola quando ingressaram na Fundação CASA e ao deixá-la, 30% deles não
retornam à sala de aula.
Metade deles abandonou a escola até os
14 anos, sendo que quase 60% dos reincidentes tinham 14 anos ou menos quando
evadiram, ou seja, deixaram de frequentar as aulas. Antes da evasão, 83,7%
deles repetiu de série, 39,8% foi expulso ou transferido e 33,7% sofreu
discriminação por envolvimento infracional.
Segundo o estudo, a interrupção dos
estudos aconteceu logo depois da entrada no mundo infracional para a maior
parte dos adolescentes. Quase dois terços deles abandonaram a escola quando já
tinham cometido a primeira infração.
Em diversos casos, essa primeira
infração foi o furto de itens de pequeno valor, como gêneros alimentícios em
mercados. Depois do furto, vem o tráfico
de drogas, que também figura entre as maiores razões
da incidência. Diferente do que a realidade os oferece, o tráfico dá a eles uma
opção de renda fixa. Somados, tráfico e roubo correspondem a mais de 90% dos
casos, sendo que 67% dos internados por roubo contaram ter feito uso de arma de
fogo durante a prática.
“65% dos entrevistados são
reincidentes”
A volta à sua comunidade pós internação
é perversa em muitos casos. Isso porque 30% não retornou à escola e somente 20%
conseguiu emprego. Reflexo disso, é o fato de que a vulnerabilidade social
entre os reincidentes em internação é ligeiramente mais acentuada. Segundo Ana
Carolina, para a maioria dos jovens, "a vida fora da Fundação é uma vida
sem perspectivas". "Eles chegavam a se questionar se sabiam fazer
algo diferente daquilo", afirma a pesquisadora.
“Chama atenção que, proporcionalmente,
mais reincidentes em internação já tenham “morado na rua”: quase metade dos
entrevistados que moraram na rua eram reincidentes, sendo que eles
representaram somente um terço da amostra total de respondente”, indica o
estudo.
Outras realidades recorrentes, após o
cumprimento da medida socioeducativa, são a discriminação e as dificuldades do
egresso na escola e no mercado de trabalho, o que contribui significativamente
para a continuidade do ciclo infracional.
Segundo o relatório, um profissional
apontou que alguns adolescentes sequer conseguem matrícula escolar devido à
discriminação: “Enquanto aqui falamos da importância dos estudos... quando os
meninos saem, não conseguem estudar. Assim não dá para mudar de vida”.
Martim, de 17 anos, internado por
roubo, afirmou que a discriminação pós-internação contribuiu para que ele
decidisse cometer novos delitos. Para parte desses adolescentes, a “pena já
cumprida se revela perpétua e os egressos são, na prática, empurrados em
direção a estratégias ilegais de sobrevivência”.
Quase metade dos reincidentes foram
apreendidos entre um e seis meses após a última saída da Fundação. “Trata- se
do período de maior risco para a reincidência infracional, o que deve orientar
a formulação de ações de acompanhamento de egressos, com especial atenção ao
retorno destes adolescentes para suas realidades e comunidades”, afirma o
Instituto.
“Cerca de 90% dos entrevistados sofreu
agressões físicas de policiais”
A violência institucional, racial e
socioeconômica é clara na vida desses jovens. Segundo o estudo, cerca de 90%
dos entrevistados sofreu agressões
físicas de policiais, principalmente em abordagens e
apreensões, além dos corriqueiros relatos de humilhações perpetradas por
policiais e outros agentes de segurança. Entre os jovens, 25% também
relatou ter sofrido espancamento nas unidades de internação provisória e
centros socioeducativos da Fundação CASA.
Não é por acaso que, em 2016, 26% das
vítimas de “mortes decorrentes de oposição à intervenção policial” tinham entre
15 e 19 anos – faixa etária que correspondia a menos de 8% da população do
estado no mesmo ano.
Há relatos de adolescentes que já foram
vítimas de agressões por familiares (8,6%), ou testemunharam briga ou agressão
na família (35,7%).
Fora do ambiente doméstico, casos de
discriminação, racismo e constrangimento são frequentes. Um perfil desses
jovens mostra o porquê: a maioria são homens (95,9%), negros (76,3%) e com
idades entre 16 e 17 anos (52,9%). Casos de racismo nas escolas, em
estabelecimentos comerciais, como lojas de rua e shoppings, e em entrevistas de
trabalho são narrados no documento. João, de 17 anos, disse que era “normal”
ser “perseguido em lojas”.
“A mãe foi a figura mais citada como a
pessoa em quem mais confiavam”
Sete entre 10 adolescentes são
visitados pela mãe, e três entre 10, pelo pai. Como já era esperado, para 69,4%
dos jovens, a mãe é a figura em que mais confiam.
“De fato, a personagem da mãe (ou das
tias) surgiu como a possibilidade de reflexão e superação do envolvimento
infracional na narrativa de muitos adolescentes ouvidos”, afirma o relatório.
Os casos são muitos. Daniel, por exemplo, de 17 anos, criado pela tia, sua
figura materna, demonstrou grande afeto por ela e lamentou que ela não pudesse
visitá-lo devido às suas condições de saúde. Outro jovem creditou à sua mãe
grande responsabilidade por seu afastamento temporário do universo infracional
“Chegou um dia que minha mãe veio me
visitar e ela estava acabada. Não me esqueço, não. Dava para ver que ela estava
sofrendo por causa do meu BO. Eu quero dar orgulho para ela.”, relatou Ronaldo,
de 18 anos.
Segundo Ana Carolina, a maioria dos
jovens morava apenas com a mãe e tinham uma relação muito positiva com ela.
"Eles têm a preocupação de não querer que a mãe vá visitar e querem sair
para vê-las. Muitos presenciaram violência doméstica e assistiram brigas e
agressões sofridas pelas mães dentro de casa", afirma.
Para o estudo, o fator de risco é que
muitas das mães de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas criam seus
filhos sozinhas, exercem trabalhos de baixa remuneração e “lidam com um nível
de estresse maior para prover financeiramente a casa e cuidar dos filhos”. Tudo
isso, aliado à existência de “uma rede de apoio ineficaz”, com “ausência de
apoio do parceiro, falta de recursos na comunidade, como creches, entre
outros”.
por Giovanna Costanti — publicado 22/08/2018
18h59.
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